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domingo, 3 de março de 2019

Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (II)



Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (II)
Parmênides Justino Pereira

Além disso, incluía ensino de outras línguas para a comunidade se relacionar com turistas, o que empolgou os técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, segundo o arquiteto responsável, Ovídio Pascual. A possibilidade de inclusão da Vila nesse projeto de revitalização é destacada pelo arquiteto nessa matéria do jornal Alagoas em Tempo de 23/10/2005: “A vila dos Pescadores surgiu na primeira metade do século passado e envolve um sedimentado ambiente social que pode ser utilizado como atrativo para o emergente pólo turístico de Jaraguá. [...] isso mostraria a possibilidade de sociabilização, da integralização e do desenvolvimento de uma área pobre (favela), transformando-o em um prospero bairro. [...] A presença da Vila de Pescadores, em Jaraguá, pode e deve ser explorada como um atrativo turístico de grande potencial, ao invés de ser vista como um empecilho para o crescimento do local como polo turístico.”.
Esta informação é de extrema importância, pois com as mudanças de perspectiva da Prefeitura, argumentar-se-á que a remoção da vila é condição para adequar a área às finalidades turísticas, como se a presença dos pescadores em suas moradias também não servisse de instrumento urbano para tal finalidade, o que vai de encontro a conceitos contemporâneos no âmbito do próprio turismo, como ressalta Vasconcelos (2007).
Esta mesma concepção, defendida pela equipe de urbanistas da prefeitura de Maceió, ao colocar a urbanização da Vila como nono subprojeto da revitalização de Jaraguá (servindo igualmente de justificativa para a liberação da verba do PRODETUR), foi corroborada por uma das principais urbanistas maceioenses, professora da UFAL. Esta urbanista nos revelou que, curiosamente, foi procurada por uma empresa ligada à prefeitura para formular um parecer sobre o projeto de urbanização da vila. Ela o fez, mas, posteriormente, o mesmo empresário a procurou para formular um parecer contrário, desfazendo tudo que tinha sido dito no parecer solicitado. Segundo a professora, que ficou indignada com tal proposta e a recusou, aquele havia sido o único parecer que concedeu gratuitamente, dada a importância social e cultural que visualizou no projeto.
[...]
É estranho que o maior investimento de recursos da época tenha gerado uma intervenção de tamanha envergadura, cujo único item não realizado do projeto foi a urbanização da comunidade pobre do lugar; tratava-se de um momento em que a prefeitura estava bem com as contas, a ponto de ter dado a contrapartida do PRODETUR, obrigação que em tese seria do Estado. Afinal, 373 moradias é um número pequeno para o cômpito de quatro anos de governo, principalmente para um governo politicamente próximo do PSDB (partido que ocupava à época o governo federal e estadual), haja vista ter conseguido habitações para 350 remoções; além do fato mais óbvio: não havia nenhum impedimento de se realizar todo o restante do projeto de urbanização, que tinha verba, posse da área, projeto arquitetônico, etc. Entre tantas ambiguidades e contradições, fato é que a Vila dos Pescadores apenas serviu de barganha para verbas federais e internacionais, mas nunca saiu da condição degradante a que foi submetida. A prefeitura apenas mudou de ideia, ou de fato nunca teve interesse em incluir a vila de pescadores no cenário da revitalização? O que fica claro é as essas contradições de postura da prefeitura em relação à comunidade, ora valorizando-a, ora desqualificando-a, o que justifica a suspeita sobre o real enfoque da revitalização de Jaraguá: um redesenho da cidade, em que os pobres não estão incluídos no seu traçado, tal como ocorre nos processos de gentrificação.
No dia 31 de agosto de 2005, o prefeito Cícero Almeida, que sucedeu Kátia Born, foi ao jornal Tribuna de Alagoas declarar o fim da “favela Jaraguá”, afirmando que os moradores seriam removidos para a praia do Sobral. A notícia pegou a cidade de surpresa, porque a comunidade não sabia e não contava com os planos da Prefeitura de removê-la. Em matéria posterior, o chefe da edilidade afirmaria que não queira prejudicar ninguém, apenas “limpar a cidade”.
Tudo acontecia à revelia da comunidade. Ou os pescadores sabiam do seu próprio destino pelos jornais, ou eram surpreendidos com as visitas desastrosas do Secretário de Habitação, que geralmente terminavam em confusão. No dia 03/11/2005, aconteceu a audiência com o Ministério Público Estadual, quando os moradores reafirmaram seu desejo e necessidade de ficar na Vila. Por solicitação da Procuradora do Ministério Público Estadual, foi convocado um encontro, marcado para o dia 20/11/2005, entre a comunidade, gestores da Prefeitura e professores da Universidade Federal de Alagoas.
Antônio Azevedo, então representante do secretário municipal de Planejamento, disse que os estudos que levavam à permanência dos pescadores no local foram caindo aos poucos, na medida em que não houve sustentação técnica para a mesma. Contudo, no final da reunião, por meio dos questionamentos da procuradora, descobriu-se que, de fato, a Prefeitura não possuía tais estudos, que se tratava de uma fala sem sustentação prática. Diante desta contradição, Azevedo afirmou que a Prefeitura, naquele momento, ainda não teria uma opinião fechada sobre o que fazer com o local, mas que o Plano Diretor não viabilizava as atividades, o que levava à conclusão de que as habitações deveriam ser levadas para o entorno e que a Vila era inadequada para alguns equipamentos urbanos. Com isso, entrava em contradição com toda a equipe técnica que fundamentou o projeto de revitalização do bairro, para quem a vila tinha viabilidade econômica e social.
O procurador da República, Rodrigo Tenório, lembrou aos representantes da Prefeitura que o convênio firmado entre a União e a Prefeitura, para a concessão do terreno, não previa a retirada dos moradores, e que a dificuldade de serviços urbanos alegada pelas autoridades seriam resolvidas no próprio projeto de urbanização, como previsto. Portanto, não via na argumentação da Prefeitura nada que justificasse a remoção dos moradores.
É desta forma que o conflito entre Prefeitura e comunidade vai ficando cada vez mais acirrado. Numa publicação de 12 de novembro de 2006, no jornal Gazeta de Alagoas, arquitetas da secretaria municipal de Planejamento afirmavam a impossibilidade de construir as casas por causa do Plano Diretor, argumento já refutado na audiência do Ministério Público. Principalmente, porque estava subscrito Art. 53 desse Plano, que constituem diretrizes específicas para a ZEP[18] Jaraguá, em seu item II – “incentivo ao uso residencial e de comércio e serviços compatíveis”. Já o Art. 92, §2o, II diz que “reassentamento da população apenas em situação de risco à vida ou ambientais”. O Art. 96, §2o, IV define os critérios dessa classificação de risco, todavia nenhum dos itens procede em relação à realidade geográfica da vila. Ainda que se argumente o fato de a vila estar também localizada numa ZAIP[19], os fatos contradizem o discurso da Prefeitura, na medida em que a vila se enquadrava em todos os critérios de interesse paisagístico, conforme está posto no nono subprojeto do Projeto de Revitalização de Jaraguá (elaborado por esta mesma Secretaria), e no Decreto Municipal 5.569, de 22 de novembro de 1996.
O conflito tomou mais corpo quando, em outubro de 2006, o Ministro da Aquicultura e Pesca, Altemir Gregolin, visitou a comunidade. O jornal Gazeta de Alagoas, de 12 de novembro, registrou o fato da seguinte forma:
A atitude, tomada depois que o Ministro recebeu um documento reivindicatório da comunidade, não foi bem apreciada pela administração municipal. A insatisfação ocorre não somente porque o Ministro não teve acompanhamento do prefeito Cícero Almeida, ou de técnicos do município, mas por ser considerada inferência em questões internas.”
A presidente da Associação dos Moradores, Maria Enaura Alves do Nascimento (Enaura), junto com professores que apoiavam a causa da Vila, tiveram uma audiência com esse mesmo Ministro em Brasília, durante a Conferência Nacional da Pesca. Ele se comprometeu em abrir os cofres do Ministério para a construção das moradias e urbanização da Vila, assim que se resolvesse a questão fundiária. Mas não havia interesse da prefeitura de Maceió nessa permanência.
Em relação à organização da resistência, é importante remeter às questões internas. Em dezembro de 2008, houve eleição para a diretoria da Associação de Moradores. A necessidade de mudança na entidade, segundo a professora Marluce Cavalcante, teve um desdobramento mais técnico que político, porque surge da necessidade de organização da comunidade para se adequar às exigências dos projetos que surgiam, sobretudo o PELC (Programa Esporte e Lazer da Cidade)  do Ministério do Esporte. Havia um esfacelamento da diretoria, que não se encontrava, reduzindo-se a dona Mariluze. Já passava do tempo de mandato e não tinha ninguém que quisesse assumir a entidade. As coisas eram levadas de forma desorganizada: não havia atas, organização da documentação, apesar de se reconhecer o grande esforço e a representatividade da gestão de dona Mariluze.
Deste modo, surgiu a iniciativa das pessoas que organizavam o PELC de assumir a Associação, sob pena de o próprio projeto não ter condições de continuidade. O entendimento era que o PELC não se sustentaria mais sem a parceria da Associação. E foi em nome dessa sustentabilidade que um grupo se mobilizou no processo eleitoral, no sentido de resgatar a entidade. É desse contexto que surge o nome da Enaura, indicada pelos colegas. De início, ela encarou com receio, mas aos poucos foi se montando a equipe, que tinha em sua maioria pessoas simples, que não exerciam liderança no dia a dia da comunidade, com exceção de Lúcia, que já fazia parte da resistência com os demais.
Então, Enaura assume a Associação, dando a ela outra cara e outra concepção, com muita informação e formação política. Ao mesmo tempo, a renovação já começa num clima de divisão da comunidade, em meio a rixas com as velhas lideranças. A renovação contemplava os pescadores mais resistentes, aqueles que insistiam na permanência e se encontravam insatisfeitos com a mudança de comportamento das velhas lideranças, sobretudo, Neno e seu Anselmo, que nessa época estavam prestes a abandonar a resistência. Assim, com um estilo de trabalho mais  pautado pela busca de apoio nas instituições e de instrumentos jurídicos, articulação com a Universidade, com o Ministério Público, com a Defensoria, com o SESC, com o IPHAN, os Ministérios, surge a nova Associação como elemento de retomada da resistência, reorganizando os moradores que eram contrários à remoção, em detrimento do movimento de desistência das velhas lideranças, coordenadas por Neno e seu Anselmo.
Com a renovação da Associação, as coisas passaram a funcionar, com os projetos de alfabetização de jovens e adultos, e, sobretudo, com a conquista de um Ponto de Cultura. Isso foi decisivo para dar continuidade a esse processo de motivação, de trabalho com as crianças e os jovens da comunidade. O Ponto de Cultura Enseada das Canoas foi um peso grande, deu sustentação e referencial para o público infantil. Todavia, esse aspecto mais pedagógico, de grande cunho organizacional, que a Associação toma com a chegada do grupo liderado por Enaura, não impediu que a entidade também se projetasse com força na luta política. Como afirma a pesquisadora Marluce Cavalcante, a luta política sempre foi mais forte, quando exigia esforços, todas as outras atividades, todos os outros direcionamentos ficavam em segundo plano. E não podia ser diferente, uma vez que se tratava do período de auge dos ataques da prefeitura contra a comunidade, não só nas visitas tumultuadas e conflituosas, como também na atuação midiática contra a “favela dos perigosos”, momento de extrema violência simbólica e campanha de estigmatização que influenciava a opinião pública.
Se por um lado, os interesses iniciais eram burocráticos – assumir a Associação em nome da sustentabilidade dos projetos culturais – o contexto empurrou as novas lideranças para a necessidade de preservação do próprio território. E, por conseguinte, acabou por projetar Enaura como liderança, em virtude da necessidade de organizar reuniões, de articulações com as instituições, o trato com a imprensa, o enfrentamento com as autoridades municipais, os embates com a SPU, tudo contribuiu para a formação política dela e do grupo, munindo-os de informações e desenvolvendo a habilidade política pela necessidade, pelo contexto conflituoso em que acabaram encontrando ao assumir a Associação. Como afirmou Enaura, no momento em que um grupo se entregava para a prefeitura, outro grupo de pessoas tinha instrução, participava dos projetos de alfabetização de jovens e adultos e, por isso, tinha contato com outros pensamentos, com as ideias de Paulo Freire, com a descoberta de que tinham direitos e poderiam lutar por esses direitos. Foi nesse momento que a resistência começou a retomar o fôlego.
 Além da diferença de formação educacional e política entre os membros da velha e da nova Associação, que fortaleceu os vínculos da comunidade com as instituições, o resgate de uma Associação esfacelada, dividida, abandonada pelas principais lideranças, não apenas garantiu legitimidade à luta, como também ajudou a construir uma nova concepção, a potencializar na comunidade uma leitura de mundo, uma capacidade de ler e entender seu processo político. Por ser alfabetizadora e ter saído dos projetos de alfabetização da CUT e do Instituto Paulo Freire, Enaura reuniu uma capacidade de pensar, de organizar, de agir, conseguindo repassar isso para as pessoas, funcionando como agente multiplicadora na comunidade.
E nos dois sentidos apresentados, a organização de projetos culturais voltados para o resgate da cidadania, a recuperação de crianças e adolescentes da comunidade e a resistência política, pode-se afirmar que a Associação de Moradores e Amigos de Jaraguá (AMAJAR), sob a liderança de Enaura, engendrou um dos maiores processos de mobilização e resistência da cidade de Maceió, sensibilizando e conquistando apoio em todos os segmentos sociais. Ao mesmo tempo, promoveu-se para fora da comunidade uma nova concepção, um modelo de organização social que reapresentava a comunidade, que ocupava os espaços sociais com as produções das crianças, os museus, as praças, os eventos, com suas exposições de pintura, fotografia, apresentação do maracatu, venda de instrumentos de percussão fabricados pelas próprias crianças, extraindo elogios de pessoas e instituições ligadas à cultura. Igualmente no campo político, a resistência vai atrair aliados, além da comunidade acadêmica que adentra na comunidade produzindo vários artigos científicos, monografias e dissertações. Para o historiador Golbery Lessa, se tratou de um dos maiores processos de resistência urbana da história de Maceió.
Em junho de 2009, o então Presidente Lula visitou Maceió para a inauguração de obras de reestruturação da orla, e se demonstrou perplexo e indignado ao sobrevoar a Vila de helicóptero. Ao que denominou “ilhota de miséria”, o presidente chamou a atenção do então Prefeito Cícero Almeida e do governador do Estado, afirmando que não poderia recuperar a orla e deixar aquilo pra todo mundo ver, colocando o Ministério das Cidades e o Programa “Minha Casa, Minha Vida” à disposição para resolver o problema. Todavia, a exposição do presidente, apesar de ter sido pública, e de seu discurso ser de fácil acesso, gerou uma polêmica na cidade. O Prefeito Cícero Almeida distorceu sua fala, afirmando que o presidente Lula defendeu a retirada dos moradores, versão esta corroborada por quase todos os jornais locais. A degravação do vídeo, por sua vez, deixa claro que não foi essa a fala do presidente:
Não é tirar como antigamente não. É preciso tratar as pessoas com respeito e colocar no lugar daqueles barracos uma casa digna, de alvenaria para as pessoas morarem. [...] E o que é importante notar, e o Cícero sabe disso, deve saber muito mais do que eu que aquele povo que mora ali deve trabalhar naqueles barquinhos que ficam lá na frente. Então ali é o local de moradia e o local de trabalho deles.”
Em nenhum momento de sua fala, Lula se refere à remoção dos moradores, mas a distorção deste pronunciamento, propagada pela imprensa, ajudou a reforçar na população o sentimento da necessidade de retirar dali as residências. No dia 04 de outubro de 2009, a jornalista Wanessa Oliveira publicou no periódico Gazetaweb.com, na íntegra, uma entrevista com o prefeito, em que este entra em contradição e distorce a fala do presidente Lula. Mesmo a jornalista insistindo que o vídeo com a fala do presidente desmente sua posição, ele insiste, e também se demonstra vazio ao justificar a remoção, afirmando que o motivo era o fato de ser área da União, que seria  uma exigência da União. Porém, a jornalista havia, anteriormente, entrevistado o Gerente de Patrimônio da União, que negou tal interesse, enfatizando que se tratava de interesse da Prefeitura. Na matéria, o prefeito ratifica a necessidade de substituição da Vila dos Pescadores pela marina, ressaltado que o presidente Lula sabia deste projeto. Todavia, mais uma vez ele se contradiz, ao afirmar que a União recebeu esse projeto, informação negada na mesma matéria pelo gerente regional José Roberto. Então, o prefeito desconversa:

Jornalista - A marina vai, então, substituir a Vila dos Pescadores. A ideia da construção da marina está inclusa dentro desse último projeto que foi entregue e aceito pela Superintendência de Patrimônio?
Prefeito- Está inclusa.
Jornalista - Em uma conversa com o superintendente, ele afirmou que o projeto de reurbanização encaminhado ao órgão não contemplava a criação de uma marina.
Prefeito - Ele recebeu o projeto dos pescadores. E o projeto da marina está todo pronto conosco. Já foi feita a demonstração.
Jornalista - Mas então não foi entregue?
Prefeito - Não, porque ainda temos um ano que é o prazo para conclusão das obras da Vila. Mas acredito que a assessoria do doutor José Roberto já deve estar informada sobre como vamos utilizar esse espaço, extraoficialmente.

Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (I)







Parmênides Justino Pereira. Natural de Recife-PE, vivente das Alagoas dedes 1978.  Graduado em Psicologia e Mestre em Sociologia pela UFAL. Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor da UFAL/Palmeira dos Índios, leciona as cadeiras de Introdução à Sociologia, Pesquisa em Ciências Sociais, e Psicologia Política. Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) Psicologia Política, Movimentos Sociais e Políticas Públicas. Defendeu pesquisa sobre remoção forçada de populações vulneráveis, onde acompanhou o caso da Vila de Jaraguá desde 2005, e atualmente estuda diversas comunidades em Arapiraca, como os pescadores do Lago da Perucaba, os removidos da comunidade Caboge (atual Bosque), e conjunto Frei Damião (ameaçado de remoção). Também desenvolve pesquisa sobre a visibilidade da Jurema Sagrada em Alagoas, com ênfase na autoafirmação indenitária da religiosidade afroindígena, momentaneamente concentrada nos desdobramentos da Jurema no agreste alagoano. 





Vila de Pescadores de   Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (I)

Parmênides Justino Pereira


Quando, em meados de 2015, a sociedade alagoana se deparou com os desdobramentos finais relativos à expulsão dos moradores da Vila de Pescadores do Jaraguá pela Prefeitura de Maceió, a partir da prolatação da sentença de despejo, a maioria dos seus habitantes não entendia o que levava moradores de uma favela suja e degradada a recusar a benevolência da gestão municipal, que oferecia apartamentos na praia do Sobral e um parque público, chamado centro pesqueiro. Outros maceioenses, que conheciam superficialmente a história, estranhavam a reação da sociedade civil organizada (Movimento Abrace a Vila), e criticavam profissionais e estudantes que perdiam seu tempo defendendo uma favela. O que as pessoas - mal informadas pela imprensa local[1] - não sabiam, era que se tratava de um fenômeno que Paulo Freire conceituou como “falsa generosidade”, mediante um processo de expropriação urbana que vinha se desenrolando muito antes da proposta de substituir a Vila por um centro pesqueiro. Vinha, na verdade, desde meados dos anos 90, através de atos administrativos questionáveis, contraditórios e omissos em relação à melhoria da qualidade de vida da população, além de um conjunto de agressões e violência simbólica pautada pela desqualificação social da comunidade e o desejo quase compulsivo de expulsar os pescadores e marisqueiras de seu território tradicional.
Durante o processo de remoção, houve uma polêmica, desnecessária, sobre a real historicidade da vila. A Prefeitura de Maceió não concordava com a tese de que a história da cidade teria surgido de uma vila de pescadores, sustentando sua tese em um mapa de 1973, em que esta não aparecia. Achar que um mapa seria capaz de dar conta dos aspectos  dinâmicos da geografia foi mais uma estratégia política de desqualificação da comunidade do que propriamente um interesse lógico pelo conhecimento real da história da cidade. A importância de Maceió no cenário regional decorre bastante do ancoradouro, e todo o litoral era cheio de pescadores, desde a época colonial. As evidências culturais da importância dos pescadores na formação social de Maceió são antigas. [...] Todavia, é em Craveiro Costa (1981) que se encontra uma referência mais próxima, fazendo alusão ao povoamento a partir do riacho Salgadinho e estabelecendo relações com o início do bairro.
   
  Assim, considera-se que a importância social dos pescadores na formação da cidade é um fato inconteste, baseado em referências historicamente consistentes, embora o mapa de 1957, apresentado pela Prefeitura como argumento para afirmar a não importância da Vila para a história da cidade de Maceió, não dê conta dessa realidade, possivelmente devido a limitações cartográficas. Para compreender a importância da Vila é preciso, antes, entender como sua trajetória se funde à do próprio bairro. No início do século XIX, o bairro de Jaraguá começa a se destacar como zona portuária que movimentava o comércio, a cultura e a vida de Maceió, que chamava a atenção por ser uma aldeia de pescadores. Em 1818, com a chegada do primeiro governador de Alagoas, Sebastião Francisco de Melo e Póvoas, o lugar passou a viver um crescimento vertiginoso, com a instalação de pontos comerciais, belos sobrados, ponto de encontro de empresários, intelectuais e políticos. Tudo isso levou o governador a trocar a capital de Alagoas do Sul (povoado do Francês) por Maceió, devido, sobretudo, ao movimento do porto de Jaraguá.
[...] A geografia presenteara o local com a capacidade de servir como barreira de proteção das embarcações contra as correntes marinhas. É esta característica que faz do lugar a passagem e estada de variados visitantes. E é quando o Porto de Jaraguá supera o Porto do Francês, que se desenvolve o comércio no povoado, atraindo cada vez mais pessoas.
Outra questão que alimentou os debates entre comunidade e Prefeitura foi a tese de que pescador não precisa viver em frente ao mar, porque em outros pontos da cidade existem
pescadores que não moram na praia, a exemplo dos bairros de Pajuçara, Jatiúca e Ponta Verde. Esse argumento esbarra não apenas na impossibilidade de compreender uma comunidade tradicional importando o contexto de outras realidades históricas, como também na omissão de fatos históricos que explicam como tais pescadores foram afastados da praia, por meio de reestruturações urbanas higienistas e avanços do mercado imobiliário voltado para o consumo da elite. É neste sentido que se explica, por exemplo, o surgimento dos bairros de Pajuçara e Ponta Verde, atual área nobre da cidade, mas que já foi reduto de muitos dos pescadores, e que, como relata Sarmento (2002), recebeu grande parte de seu povoamento de pescadores que foram expulsos de seu lugar de origem para dar lugar às moradias das classes privilegiadas.
A Vila de Jaraguá, neste sentido, é apenas mais um exemplo de continuidade dessa higienização da orla maceioense. Desde a sua localização até sua expulsão, tudo é um reflexo deste movimento geopolítico de empurra daqui, tira dali, de submissão das populações pobres aos ditames do poder público e sua política de remoção, e inclusive de certos processos de grilagem  relatados pelos moradores antigos, quando a área era abandonada e utilizada por criadores de gado [...] Eles descrevem como as cercas foram se fincando e redefinindo o esquema de propriedade do local. [...] A despeito de ter aglomerado no seu interior pescadores oriundos de diversos estados, como Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, e de toda a costa do Estado de Alagoas, de Maragogi a Piaçabuçu, muitas famílias pesqueiras eram oriundas das ondas migratórias dentro da própria cidade ao longo de anos. Assim, vinham de bairros como Ponta da Terra, Levada, Trapiche, dentre outros. Há relatos de que a antiga balança teria sido onde hoje se encontra as Lojas Americanas, embora se observe que a aglomeração mais recente - remontando aos anos oitenta - inicia-se onde hoje se encontra o Memorial da República, em frente ao coreto, de onde se podia atravessar, no tempo dos banhos dominicais na praia da Avenida em direção à Pajuçara.
Essa configuração da comunidade de pescadores começa a sofrer investidas da Prefeitura, por meio de várias remoções, na gestão do então prefeito Fernando Collor (1979–1982), que retira grande quantidade de moradores e os realoca na zona de expansão da cidade, próximo ao posto da  Polícia Federal, cruzamento da BR 104 com 316, aglomeração que ficou conhecida como favela do DER. Outra grande remoção é feita pelo prefeito Ronaldo Lessa, para a construção do memorial acima citado e do estacionamento de Jaraguá, espaço urbano só utilizado em períodos de festas.
           Após estas remoções forçadas, a comunidade do Jaraguá se caracterizava como assentamento urbano subnormal, onde se acomodavam, em condições subumanas, cerca de 700 famílias, das quais de trezentas a quatrocentas eram de pescadores. A pesca era atividade mais antiga do bairro. A vila proliferou na medida em que as pessoas foram tendo filhos, os filhos foram crescendo, casando, tendo filhos, os filhos cresceram, casaram, os netos foram aparecendo,  a família crescendo, e os pais tiveram que construir novos barcos e novas casas para alojar os filhos crescidos e casados que se multiplicavam.
             Em 2001, época da remoção das 350 famílias para o Conjunto Carminha pela então prefeita Kátia Born, a  comunidade de Jaraguá era uma comunidade heterogênea. Lá  habitavam diferentes grupos populacionais, que ao longo do tempo foram ali se fixando, através dos processos de migração natural da atividade pesqueira e do processo social que impulsiona o  crescimento urbano. A favelização começara a partir dos anos oitenta, quando além dos atrativos  naturais do lugar e sua localização privilegiada no tecido urbano, alguns eventos de natureza política contribuíram para o crescimento desordenado e densidade populacional. O mais crítico deles foi a remoção de famílias sem-teto que viviam dispersas pela cidade, associado a famílias de desabrigados das chuvas torrenciais. Todos eles foram colocados na comunidade do Jaraguá pela  então secretária Lucíola Toledo, amontoados no armazém da antiga Cibrazen. Essas famílias  viviam de outros empregos e subempregos na região, como catadores de lixo, empregadas domésticas, guardadores de carro, ambulantes, atividades portuárias, atividades auxiliares da pesca, dentre outras.
No entanto, o armazém estourou, pois os barracos foram aparecendo em seu entorno, crescendo exponencialmente e adentrando a Vila de Pescadores. A comunidade passa então a
conviver com uma heterogeneidade cultural oriunda dessa migração forçada. Após a fixação dessas famílias, outros barracos com famílias estranhas à cultura da pesca foram se aglomerando próximo ao galpão da antiga fábrica.
A comunidade possuía arquitetura marcada por espaços de múltiplas funções, que ao mesmo  tempo serviam de oficina de trabalho (tratamento do peixe), lazer, varal para estender roupas, e ponto de encontro (bate-papo com as amigas e presença das crianças). O terraço poderia ser a  própria rua, e a frente da casa geralmente tinha várias utilidades e muitos jovens reunidos. Ali trabalhavam, se divertiam, conversavam, perambulavam, havia toda uma sociabilidade que  engendrava diversas atividades, muito embora a principal delas fosse a pesca.
               Essa, no entanto, era uma realidade desconhecida da maioria dos maceioenses, pois o bairro estava quase abandonado, e só voltou a ser o foco das atenções quando a prefeitura o incluiu no projeto de revitalização de centros históricos. Tal iniciativa começou a surgir nas principais capitais brasileiras, no sentido de resgate das atividades locais, mas também atividades artísticas, como foram os casos de empreendimentos na mesma ordem em centros históricos como  Recife, João Pessoa, Salvador, Porto Seguro, e São Luiz.
Então, nos arredores do cais do porto de Maceió, a cidade efervesceu como espaço de construção de bens materiais e vida comunitária. Mas até meados dos anos 1990, o que restava do bairro era velhos armazéns de exportação abandonados, ferrovias desativadas, praças depredadas e descaracterizadas, a vila dos pescadores favelizada, e apenas lembranças de um lugar que deu vida à cidade.
Como alternativa ao turismo de sol e mar, que cai na baixa temporada, a Prefeitura Municipal se empenhou no planejamento e execução do projeto de revitalização, como tentativa de diversificação da oferta turística, através do turismo cultural centrado no lazer, entretenimento e conservação do patrimônio histórico. Este projeto é lançado em 11/08/1995, no coreto da Avenida da Paz, pelo então prefeito Ronaldo Lessa, que será sucedido pela prefeita Kátia Born, esta última dando total impulso à continuidade do projeto no percurso de dois mandatos.
Antes disso, o jornal Gazeta de Alagoas de 08/06/1997 lançara um caderno especial em conjunto com a Prefeitura, no qual se anunciava o empreendimento como o mais importante  investimento público da época, que transformaria o bairro em um belo atrativo para a cultura, o lazer, o turismo, o comércio de serviços. Nessa publicação, a prefeitura destaca que o projeto acarretará uma grande demanda turística, atraindo o visitante de “renda mais elevada” e promovendo o aumento de sua permanência na cidade. Coincidentemente, trata-se de uma época de grande crise econômica no Estado e no setor sucroalcooleiro, e os usineiros são proprietários de grande parte dos armazéns e casarões de Jaraguá, além de investidores locais no setor turístico.
Consequentemente, são os principais beneficiados com a revitalização. Um dos primeiros passos do projeto foi a elaboração de leis que dividiram a cidade em Zonas Especiais de Preservação (ZEP), mais especificamente a Lei Municipal 4.545 de 22/11/1996. Com ela, Jaraguá ficou definida como ZEP-1. O Decreto Municipal 5.569, por sua vez, estabeleceu normas que garantiram a caracterização do bairro dentro dos padrões esperados, como a manutenção da tipologia construtiva e a volta do alinhamento das fachadas. Esse mesmo Decreto estabelece a Vila de Pescadores como Zona Especial de Preservação [...]
A linguagem do decreto não deixa dúvidas quanto à importância da Vila tanto do ponto vista  turístico, quanto do ponto de vista ambiental. Para gerenciar o projeto, é criada a Unidade  Executora Municipal/PRODETUR (UEM), através da Lei Municipal 4.487 de 27/03/1996. No relatório de atividades de março a dezembro/96, a UEM destaca o que chamou de “problema ambiental”, na antiga Vila dos Pescadores, localizada às margens do Jaraguá e caracterizada como favela.
Os objetivos básicos do PRODETUR/NE[10] eram: a criação de áreas turísticas, promovendo o incremento desta atividade no município; resgatar o patrimônio histórico/arquitetônico local, através de sua correta recuperação e revitalização; melhorar as condições de vida da população, através da provisão de serviços de saneamento; preservar os ecossistemas terrestres e marinhos do bairro; e melhorar as condições de acessibilidade à área de intervenção. Para tanto, a Prefeitura promoveu um amplo investimento de infraestrutura básica e serviços públicos (abastecimento d’água, esgoto sanitário, tratamento e controle de resíduos sólidos, vias de acesso) que potencializaram as atividades turísticas, com recursos da ordem de US$ 80 milhões, sendo metade financiada pelo BID, por meio do BNB. A outra metade seria a contrapartida dos poderes público federal, estadual ou municipal. Com novos investimentos e aumento da permanência dos turistas, a consequência esperada seria o aumento na geração de emprego e renda. Com isso, os poderes locais integravam a cidade na reprodução do capital através da atividade turística, como afirmou Vasconcelos [...]
O projeto de revitalização foi fragmentado em subprojetos, quais sejam: a revitalização de obras  físico-arquitetônicas, que incluíam a restauração do prédio da Associação Comercial de Maceió e  o Museu da Imagem e do Som; a despoluição do tradicionalmente poluído Riacho Salgadinho.  Acrescenta-se também a reestruturação do sistema viário da área interna do bairro, como o alargamento de pontes na Avenida da Paz, drenagem e pavimentação para evitar as tradicionais inundações na Avenida Cícero Toledo, parte da Rua Comendador Leão, Avenida Maceió, e as ruas Graciliano Ramos e Mato Grosso, além das margens do riacho Salgadinho. A Rua Sá e Albuquerque, via arterial do bairro, teve o asfalto negro quebrado até aparecerem as antigas pedras (os trilhos do antigo bonde que circulava não estavam no local). Postes de cimento foram retirados e substituídos; as fiações da luz elétrica e da telefonia ficaram subterrâneas. Houve a construção de um grande estacionamento na Avenida Cícero Toledo e a construção do Centro de Convenções, além da promessa da construção de uma marina e incentivo ao esporte e comércio náutico. O nono subprojeto desta mega intervenção seria a urbanização da Vila de Pescadores, conhecida como favela de Jaraguá.
O direcionamento do programa de desenvolvimento do turismo acabaria por não atingir as metas a que se propôs, mas não sem deixar as sequelas tradicionais do caráter excludente deste  tipo de intervenção gentrificadora, que, onde ocorre, ocasiona conflitos e exclusão das comunidades locais. [...] A revitalização do bairro de Jaraguá se deu no contexto da globalização do turismo, caracterizado por capitais transnacionais, projetos de grande porte e exclusão social da comunidade local. Assim, um dos principais problemas da revitalização do bairro de Jaraguá como potencialidade turística pode estar associado a um dado importante citado por Vasconcelos (2004) que é a capacidade de reordenamento do território para sua realização. Este autor explica que este reordenamento apresentou uma falha crucial, qual seja o esquecimento da potencialização de uma melhoria de vida para a comunidade local, fato observado não apenas pela remoção de 350 famílias da comunidade de Jaraguá em 2002, mas também no descaso frente às condições suburbanas da Vila dos Pescadores, até sua total remoção.
A condição de pobreza conviveu simultaneamente com a área revitalizada, em um flagrante contraste social, apesar de a Vila dos Pescadores ter sido considerada como Setor de Preservação  Ambiental (SPA) pelo Decreto Municipal no 5.569, de 22 de novembro de 1996. Com que ética se pode falar em leis, no âmbito do posterior processo jurídico da remoção, se o próprio abandono da  Vila, em condições degradantes, foi uma clara violação da própria lei municipal criada para fins da referida revitalização?

Na verdade, o próprio projeto de revitalização já focalizava em seu conteúdo as ações que deveriam ser executadas como parte do processo de turistificação do lugar. No projeto apresentado para aquisição das verbas do PRODETUR, estava incluída a urbanização da vila (no mesmo espaço onde as famílias viviam), que era o nono subprojeto, através da implantação do sistema de saneamento básico, coleta seletiva do lixo, energia elétrica, abastecimento d’água, pavimentação, drenagem, construção de residências térreas de sobrados, orçadas em R$ 7.919.000,00.  O projeto arquitetônico elaborado para isso em 1996/1997 incluía também a construção de um mercado modelo, estacionamentos, centro de convivência, cais, seca de pescado, escola de pesca, estaleiro, cooperativa de pesca, correios/telefone, praça, primeiros socorros, pontos comerciais, área de lazer e esporte, casa cercada por área verde, como coqueiros e árvores frutíferas, afirmando o princípio de autossustentação da comunidade.