Maria
Goretti Brandão
Jornalista,
Assessora de Comunicação. Foi editora do blog, Ensaio Geral no Portal
CadaMinuto, tem publicação no Caderno B do Jornal Gazeta de Alagoas. É autora
dos contos, Para Comer, Beber e Dormir Comigo, O Conto das Alagoas, Recife: Ed.
Bagaço, 2007, Carlito Lima, Edilma Bomfim, (orgs.). Coisa de Homem, Agosto, À
Sombra do Umbuzeiro, Casos e Loas, São Paulo, Gráfica Epitaciana, 2006. Só Para
Contar, Zilma e Eu Meio às Penas, À Sombra do Juazeiro, São Paulo, Gráfica Epitaciana,
2008. Buraco de Entulhos, Entre a Vida e o Tempo, À Sombra da Quixabeira, São
Paulo, Editora Epitaciana, 2010.
Dois
dedos de prosa
Gortetti sempre nos trará as cores e
os modos do sertão, andando por sua vida e pelo lugar, alinhando sua
circunstância com os tempos vividos junto a seu povo.
Campus/O Dia agradece e convida a
todos a ver a vida feita sobre o terreno do encantamento com o tempo e a
circunstância no espaço.
Vamos
ler!
Parceira,
muito obrigado!
Sávio
O rio de São Francisco e o seu
Pão de Açúcar
Goretti Brandão.
Rua da Frente |
Venho do litoral rumo ao sertão
alagoano. Após uma comprida e demorada viagem, cheia de estradas de barro e
solavancos e descendo uma longa ladeira que serpenteia a serra, avisto o Cristo
Redentor sobre o Morro do Cavalete e as águas azuis do Rio São Francisco que o
festejam. Na quentura das três horas da tarde, contemplo o mundo até onde meus
olhos alcançam.
A rua principal é uma imensa
linha reta, larga e plana e possui um corpo de onde outras linhas,
perpendiculares e paralelas, enchem-na de braços e pernas e saem a distribuir
casas e gentes. É a Avenida Bráulio Cavalcante, que se estende desde o Grupo
Escolar que leva o mesmo nome, até a Cadeia Pública Municipal.
Veste-se majestosa com centenárias
e frondosas árvores, que fazem sombra sobre os bancos de suas praças. É a
Cidade Branca com sua alma sertaneja, cercada de xique-xiques e mandacarus.
Cheguei. Estou à porta de casa. Eis-me aqui em minha pequena pátria, a Terra do
Sol, Espelho da Lua, Pão de Açúcar. É assim que começo, abrindo o meu portal de
memórias e deixando que elas criem asas.
A morada da minha infância tem
fachada com porta e grade, uma alta, maciça, a outra menor, detalhada e
dividida em duas, com postigos e duas janelas. Retorno à visão da casa e nela
adentro. Ando pelos seus quartos e salas, seu quintal, seu beco que acompanha
em paralelo um corredor estreito, onde um tanque de cimento testemunha nossa
vida em movimento.
Ela é grande, simples, iluminada,
antiga e de muitos anos antes de mim. Tem cumeeira com telhado bem alto que
declina abruptamente, e no corredor quase tocamos os seus caibros e ripas. Duas
janelas e uma porta lateral com portais de madeira tosca dispostas neste vão
emolduram avencas penduradas e no chão, vasos com antúrios viçosos estão sob o
céu azul ensolarado, onde pequenas porções de luz brilham sobre as sombras das
folhagens.
Brinquedo espalhado pelo chão,
vozes, e eu seguindo a caminho da cozinha, que tem fogão à lenha cuspindo
fuligem por todos os lados e realiza em si a alquimia dos nossos afetos. Minha
mãe está de costas, voltada para ele e tem um abanador de palha em uma das
mãos. Na outra um mexedor de brasas, que ela atiça e estrelinhas douradas saem
voando de dentro do fogo.
Sento-me. A velha cadeira de
balanço feita de bambus e cordas provoca-me desconforto, que só a saudade o
torna, agora, desejável. Aqui, os mais variados aromas penetram em mim. Os
doces, as comidas, as frutas e todas as presenças que transitam pela cozinha,
tatuam-se nos meus sentidos através dos seus cheiros que os chamarei para mim
mais tarde e eles ressuscitarão.
O tempo muda de uma hora para
outra. Fecha-se. No inverno as sombras descem sobre esse mesmo lugar e as cores,
cinzas, diversos tons enegrecidos e azuis desbotados, constroem um cenário melancólico.
É neste canto aqui da casa que vivem o nosso papagaio e uma parreira ocupa-se
em esparramar-se e enfeitar minha vista, com pequenos e novos cachos de uva.
Essa imagem dá-me a sensação de
estar contida, estática, em memória fotográfica, que quando evocada, aparece da
mesma forma e que por essa razão vence o tempo. A chuva vai se anunciando aos
poucos. Primeiro a ventania que varre a poeira das telhas e em seguida o pó que
cai sobre nossas cabeças.
‘
Vai chover dona Demantina’.
Raulina corre para o quintal e tira às pressas as roupas que secam no varal.
Volta depressa pela porta dos fundos, derrubando algumas peças entre o quintal
e o último aposento da casa. É março e um chover com trovoadas e relâmpagos
enche a tarde de sons estrondosos. Tudo parece parar de repente. O barulho
rítmico dos pingos d’água principia.
O cheiro de terra molhada invade
meu olfato e expira através da minha respiração, uma espécie de magia que
constela a presença de outros sentires dentro e fora de mim e algo me desperta
para o desejo de que esse instante sobreviva ao tempo, acrescentando-se às
páginas de todas as recordações do mundo, para que a beleza dessa vivência
nunca se perca e que seja eterna.
Acompanho a música da água sobre
o telhado. A mãe da minha mãe, uma grande contadora de estórias e histórias,
anuncia que a abóboda celeste está sendo lavada. Descreve com riqueza de
detalhes a cena lá em cima, onde Nossa Senhora, dona de casa, celestial, agora
de carne e osso e que eu a imagino com lenço na cabeça, igualzinha à minha mãe
e a todas as mulheres da vizinhança, determina com sua voz pura e suave, que a
limpeza seja feita.
Aos montes os anjos trazem nas
mãos suas vassouras, acendem e apagam luzes, arrastam os móveis divinos e
despejam sobre a Terra as águas do céu. Os pingos engrossam e as goteiras
aparecem. ‘Chega Raulina!’ grita diligente a minha avó, que some e volta às
pressas com panelas velhas, baldes e bacias, espalhando-as pela casa quase
toda.
Mãe e avó da autora |
Nova estação. É um dia de
segunda-feira, a claridade do sol chega à janela do meu quarto. Acordo ouvindo
o homem que vende vassouras de palha gritando um pregão. Barulho de cascos de
animais, rumor de carros de bois, de metal batendo um no outro, um cheiro forte
de fumo e o burburinho da feira livre abrem as cortinas desde outro momento que
descrevo.
Matutos em idas e vindas para lá
e para cá, as duas anãzinhas que sentadas bem próximas uma da outra em seus
banquinhos, dispõem à venda suas bonecas de pano em um grande balaio. O
colorido de suas roupas me deixa maravilhada e se não é minha avó que me chama,
não saio mais de onde estou.
Bêbados trôpegos saem dos
botecos, atrapalham-se e à marcha dos transeuntes. Caminho por entre as barracas
atravessando a avenida até chegar onde minhas quatro tias-avós, Amélia, Sinhá,
Dora e Prazerinha, muito afetivas, vendem cocada, broa, sonho e modinha, sobre
uma mesa improvisada com o encosto do banco da praça e algumas tábuas.
Atrapalho-me neste turbilhão de
tantas lembranças que se evocam a si mesmas e perco ao tempo sua linearidade.
Procuro buscar-me entre os anos como se em mim tivesse guardado pedacinhos de
memórias escritas em rodapés de textos ou presas na parte superior das páginas
deste caderno empoeirado, onde a vida já escreveu tantos capítulos.
Fecho os olhos e as lembranças
inauguram outra cena. Acordamos muito cedo, eu e meu irmão, e estamos vestidos
em pijamas de flanela, sentados no batente, e com a porta principal
entreaberta. É uma manhãzinha fria de agosto e a rua está coberta por uma
espessa neblina. Ficamos em silêncio mergulhados na opacidade que esconde de
tudo os seus limites e formas, vendo vultos saírem de dentro dela, como
fantasmas vindos do nada.
De súbito consigo ter a noção
materializada do mistério. Ficaremos assim, contidos entre a perplexidade e a
fantasia, e estaremos calados vivenciando a sacralidade despejar-se sobre as
coisas, até a névoa se dissipar e a avenida revelar-se novamente, longa e
definida. Acode-me outra lembrança de um dia de domingo ensolarado.
Estamos em frente ao portão da
casa dos meus avós paternos, meus pais, eu e meus irmãos. Do lado direito
estende-se um jardim que vai até o quintal, e de lá avança até os pés de um
morro cheio de pedregulhos. Duas goiabeiras frondosas, uma com frutos vermelhos
e a outra brancos, uma pitangueira e talvez outras que me escapam à memória, ali
brilham sob a luz da manhã.
Na sala um comprido banco de
madeira está próximo à porta de entrada e compõe um simples e quase harmônico
conjunto com o restante dos móveis. Há retratos antigos na parede. Do lado oposto,
onde elas formam um vértice, uma rede liga os pontos e cria um ângulo reto.
Minha avó tem nela o seu lugar preferido. Izaura Brandão, a mãe do meu pai, é
franzina, com feições graves, cabelos grisalhos sempre presos por trás da nuca.
Em ser tão miúda, contrasta com a
sua personalidade forte. É uma mulher de curtas, firmes e diretas palavras, que
soam sempre como ordens. Ela costuma usar uma saia inteiriça e uma blusa leve.
Sobre ela, um casaco vermelho de lã. O seu balançar é bem proporcionado. Vai e vem, em um ritmo quase perfeito e que
não sobra, senão bate-lhe a parede nas costas. A nossa visita é conveniente e
sempre se faz breve.
Sobre o meu avô paterno. Todas as
tardes ele vem nos visitar. Descansado, atravessa toda a extensão da avenida a
passos lentos. Usa costumeiramente chapéu, bermuda e sandálias de couro. Antes dele, Turco, o seu cão, anuncia-se
entrando casa adentro, seguro e tranquilo - um território fora do seu,
incorporado aos próprios domínios -, e vai deitar-se aos pés da cadeira onde
ele costuma ficar.
Vovô que tem preferência em estar
entre as mulheres da casa, o que o faz muito à vontade, é sempre bem vindo. Sua
conversa é descansada e cheia de pausas. Fala sempre sobre coisas passadas ou
sobre aquelas as quais os anos tornaram-nas mornas. Sua antiga canoa rio acima,
rio abaixo, o calor sufocante do verão, os tempos do plantio e da cultura do
arroz ao longo das margens ribeirinhas.
O gosto do café quente. Reclama
do suor que lhe desce à testa, e que o enxuga com um lenço que traz no bolso e
sobre os parentes vivos e mortos, deles e da minha avó Izaura. Alonga-se nas
histórias e conta-as com riqueza de detalhes, personagens, nomes e sobrenomes,
sem errar nenhum deles ‘Lembra dona Fulana de Tal, dona Diamantina?’
‘Não estou bem lembrada, Seu
Antônio Hilário’ Minha avó recorre à memória, passa a mão no rosto, inclina um
pouco a cabeça, ergue a sobrancelha direita e espera. Ele quase se angustia.
Ambos esperam. Se falha a lembrança, não há como a prosa andar. O silêncio
estabelece-se. Ela, beirando a aflição, entorta a boca, fecha o punho e dá
pancadas leves em uma das têmporas e depois cruza os braços bem abaixo dos
seios.
E de súbito, lembra. A tensão se
desfaz. Meu avô restabelece-se da expectativa e da possibilidade da sua
narrativa esfiapar-se e a conversa entre eles prossegue animada, até que outro
breve hiato aconteça. É assim todas às vezes. O maior de todos os meus amores e
que me ensinou sobre muito do pouco que sei é minha avó materna, que acima
contracena com o pai do meu pai.
Nesse momento, cálida e serena,
ela está sentada à máquina de costura. É professora de música e por isso fica
atenta quando qualquer um de nós aventura-se a cantar. Quando falta à gente,
voz, para chegar ao final das melodias, ela antecipa-se e recomenda que façamos
um falsete. Encostada à parede, Maria Emília, uma rapariga velha e aposentada
do ofício.
No dizer dela, quer despejar em
seus ouvidos, todas as novidades que colheu na rua. ‘Quero saber não, mulher. Estou
correndo de coisas que me acrescentem mais pecados. Conte a outra. Isso é
tentação do inimigo’ e ela desanimada, senta-se em uma das extremidades da
mesa, deita a cabeça sobre um dos braços e aceita o café com pão, que a minha
mãe vem trazer como consolo.
À memória da minha infância,
ainda nela estou, aprendendo encantos para fazer a vida ser do jeito mesmo que
será. Das minhas lembranças surge nítido o timbre vocal da minha avó, que sem
enxergar direito, mobiliza todo mundo para procurar seus óculos que se
esconderam dela e da gente, meninos, nus da cintura para cima.
Temos muitas brotoejas e as
costas cobertas de uma mistura de goma e cachaça para aliviar as coceiras que
elas provocam. Somos assistentes às agonias de minha mãe que se vexa por
qualquer coisa e uma vez ficamos sabendo sobre o meu pai, que saiu a serviço e
voltou acidentado, duma viagem inexplicável na companhia de amigos e uma meia
dúzia de mulheres alegres.
E que como era previsível, a
minha mãe ficou sabendo, entristeceu-se e encheu-se de lágrimas. Outra vez, uma
festa de Ano Novo, cuja alegria foi interrompida com a notícia do suicídio do
meu primo Zezinho. Eu não entendia como aquilo veio comprometer a beleza do meu
vestido de cassa azul com gola branca, incompleto, sem o belo laço vermelho.
Minha mãe, brusca, o arrancou sem nenhuma justificativa. Que tem ele a ver com
a morte?
Passa-se algum tempo. Estou
viajando no banco de trás de um automóvel que faz a curva estrada de barro
afora. Em meio à secura da vegetação, o clima hostil, olho dois meninos
barrigudos sentados no chão, e que à minha passagem, também me olham. Parecem
dois anjos sujos e sem asas, protegendo um cachorro vira-lata, que se passa por
protetor deles.
A visão traz-se à memória outra
memória, anterior, de uma espetacular paisagem, onde há na imensidão da terra
nua e ocre, a única árvore florida. Toda amarelinha, sem uma folha sequer. Só
flores. Uma craibeira. A sua beleza entra pelos meus olhos e deixa a minha alma
agitada de tanto amarelo. Meu coração enche-se de água e derrama-se pelos
olhos.
Emoção em ver meninos, cachorro e
aquele amarelão, todos misturados. É um sertão que sei de cor. Outro dia que já
amanhece dado às surpresas. Jipes e Pick-ups verdes chegam a Pão de Açúcar e
distribuem, ao longo das praças, soldados do Exército em Campanha Para a
Erradicação da Varíola Estamos não sei ao certo, em 1967.
Todos serão vacinados. Um dia
medonho às crianças. Uns se escondem, enquanto outros choram. Estou com sete
anos e tenho medo. Choromingo. Dou sinais de que cairei no berreiro. A minha
mãe segura firme a minha mão e explica ‘não dói. Será como picada de formiga’.
Confio nela e entrego o braço ao soldado.
É por essa época que passam em
frente à minha casa, cortejos fúnebres de crianças vindas de uma desses locais
esquecidos, chamados de pontas de rua. Corremos a vê-los. Mortas, as
criancinhas parecem enceradas, pintadas de azul, de olhinhos fechados,
mãozinhas cruzadas sobre o peito. Tudo indo ser anjo no céu.
É o que me diz a minha avó, para
alívio à minha tristeza. A vida me aturde mudando apressada os cenários e um
carro de boi passa com rodas que rangem cheio de moringas e esteiras. Os bois
vão-se aguentando, um encostado no outro. Mas, aquela história da minha mãe
sobre que agulhada de vacina, era igual à picada de formiga, é tudo mentira.
É como saudade. Ainda hoje quando
lembro ela dói. É tempo de quaresma. Em casa entramos em clima de seriedade e
somos chamados à contrição e às orações. Voltamo-nos à penitência. Um ar quase
sombrio, exalando sacralidade paira sobre nós. Mergulhamos na prática católica
exigida. Tenho a estranha sensação de estar sendo vasculhada.
Tendo que tomar uma espécie de óleo
de rícino santo ou algo especial para purificação da alma. Chega a Semana
Santa. A música é banida e o silêncio é pontuado pelos gestos comedidos e a
expressão grave com a qual somos policiados. Minha avó nos observa pelo canto
do olho. Às vezes algum de nós esquece-se da tristeza imposta e diz ou faz algo
engraçado.
O riso é reprovado Voltamos todos
à representação da tristeza. Somos oito irmãos e dentre eles, os maiores, mesmo
crianças estamos comprometidos com os sofrimentos do Cristo, submetidos em uma
espécie de vigília à dor sagrada, vivendo mesmo sem qualquer jeito, o luto
santo e querendo sofrer, o mistério, sem sabermos como vivê-lo.
Agora mesmo o lugar onde me
acomodo chama-se mãe. Nele a presença forte dela invade todos os espaços de
quem sou, cantando cantigas de notas tristes, depois alegres, que se intercalam
e abastecem-na quando retraída. Alguma vez destempera-se reclamando de tudo ao
mesmo tempo, às vezes cheia de mágoas.
Outras vezes por coisas tolas,
explode em sonoras gargalhadas de intensidades variadas, que repercutem no
humor da casa. Suas disposições emocionais trafegam ondulantes entre dois
opostos em frações de minutos. Ela é alva, de aparência agradável e de boa
estatura. Tem cabelos curtos, veste-se com discreta elegância, embora não
ostente vaidades.
Vejo-a bonita, fisionomia
cotidiana, de uma beleza comum que se confunde entre outras sem destaques. É
amante da leitura, bem educada, sensível e ocasionalmente suave... Minha mãe
tem atitudes infantis algumas vezes, e agora eu a entendo melhor. Dona de uma
constante ansiedade, não admite que opinião nenhuma seja diferente da sua,
portando-se como a palmatória do mundo.
Quando contrariada irrita-se com
facilidade e perde toda suavidade. Vive colhendo dos livros, as estórias todas
de amor e entre um capítulo e outro, deixa-se estar por um tempo com os olhos
entre tristonhos e perdidos. Consterna-se, fica meio desiludida e encosta-se à
poltrona, imaginando com certeza, que a sua vida está distante de incorporar
elementos que configurem os romances lidos.
Suspira. Lê mais algumas páginas,
abandona o livro sobre o colo e volta a suspirar. Eu a observo com certa
angústia, sentada no chão de cimento frio, enquanto decoro a tabuada. Em outras
ocasiões é dada a pieguices, dramatizando situações vistas por onde anda o que
me arranca tanta lágrima e soluços, que ela acaba se aborrecendo comigo.
Meu pai é um homem taciturno, de
pouquíssimas palavras e de olhos graves. Tem a testa vasta, cabelos sedosos,
dentes alvos e um sorriso que até agora não sei definir, pois nem sempre é de
satisfação ou aprovação, o que para descobrir é preciso se arriscar muito. Com
enorme talento para o desenho, retrata de memória, belas canoas que margeiam as
areias do rio.
O que faz cuidando em
retratar-lhes toda a beleza nos mínimos detalhes e de maneira realista. Também
desenha cavalos maravilhosos. Às vezes me coloca no colo, me beija no rosto e
anda de mãos dadas comigo, quando vamos buscar mamãe no trabalho dela. Mas
esconde-se sempre no silêncio durante todo o trajeto.
Boêmio, amigo das farras quase
intermináveis, ele canta divinamente bem e faz-me de vez em quando, ler em voz
alta, para que ele e eu escutemos a poesia de Catulo da Paixão Cearense. Entre
um verso e outro, levanta sereno uma das mãos. Faço uma pausa. Ele quer saber
de mim o que entendi e quase ordena ‘ Minha filha, sinta a beleza do que ler’.
Descanso temores nas cantigas que
ambulantes circulam pela casa. Inauguro todas as novas certezas, ciente de que,
as boas lembranças são como um antídoto às coisas ruins. A felicidade
instala-se, soberana e mágica. Contamina o ontem e o agora, solicitando da
simplicidade, a razão da vida lá no futuro, onde me encontro. Tudo é simbólico
e profundo. Recolho à memória o que me sustém e ao meu próprio universo de
saudades, incandescentes como as estrelas.
Esse texto nos traz lembranças eternas e maravilhosas, parabéns minha amiga Goretti pelo excelente texto...Abraços Savinho, sucesso....
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