Adicionar legenda |
Amaro
Hélio Leite da Silva é professor do Instituto Federal de Alagoas, mestre em
sociologia pela UFAL, doutor em história pela UFPE, coordenador do Grupo de Estudos, Memória, Tecnologia e
Etno-história de Alagoas (GEMTEH) e membro do coletivo Índios de Alagoas: cotidiano e etno-história.
Esta é uma bela história de vida de um homem
que vem da periferia, transforma-se em um Professor Doutor e não perde suas
raízes. É o caminho que percorreu o Professor Doutor Amaro Hélio da Silva. Além
disso, o texto nos fala sobre o delineamento de todo um contexto social e
político, desde a saída do meio rural ao encontro da periferia em Maceió.
Sem dúvida Campus/O Dia agradece a
oportunidade de poder publicar este texto e convidar seus leitores para conhecer um
pouco da vida de Amaro Hélio da Silva.
Um abraço
Sávio de Almeida
UMA
VIDA DE LUTAS E UTOPIAS – parte 1
Amaro
Hélio Leite da Silva
Fazenda Conceição: a infância no
interior
Nasci
numa noite de 25 de março de 1973, no povoado Bananal, Fazenda Conceição,
Viçosa (Alagoas). Minha mãe conta que antes da parteira chegar para fazer o
parto, eu já estava nos braços da minha tia-madrinha Dodô, a quem devo os
cuidados e o afeto dos meus primeiros momentos de vida, além de muitos outros.
Foi um dia inusitado: meu pai havia saído às pressas, para buscar a parteira
quando se deparou com assombração numa encruzilhada próxima à minha casa, o que
contribuiu para retardar o socorro, na medida em que ele ficou pálido,
arrepiado e imóvel por algum tempo.
Sou
filho de José Manoel da Silva e Francisca Leite da Silva. Meus pais eram
pequenos agricultores e viviam como arrendatários; eles alugavam algumas
tarefas de terra do proprietário da fazenda, onde podiam construir sua moradia,
produzir e até comerciar, mas, ao final de cada ano, era preciso pagar pelo seu
uso. Não lembro quantas pessoas moravam na fazenda, mas metade fazia parte da
minha família e todos viviam nessa condição.
A
fazenda não era muito grande, mas possibilitava uma economia de subsistência
para cada família e o suficiente para pagar o arrendamento da terra. É difícil
lembrar exatamente como era o lugar, mas a conversa com os meus pais me ajudou
a relembrar os lugares e os fatos que marcaram minha vida. Lembro, por exemplo,
da escola de Mobral que minha mãe dava aula; do rio onde tomávamos banho; do
campo de futebol; da bodega do seu Jason; e, principalmente, da minha casa,
onde vivi os primeiros anos da minha vida.
Morávamos
numa casa muito simples, comum à maioria dos pequenos agricultores da região.
Era uma casa de taipa, feita de varas trançadas e barro, com uma sala, um
quarto e uma cozinha. O banheiro ficava no quintal, onde, também, havia algumas
roças de feijão, inhame e macaxeira para a nossa subsistência. Os móveis eram
poucos e, essencialmente, utilitários: o fogão era de barro e lenha; a mesa era
um metro quadrado de madeira, com quatro lugares, reservada para hora das
refeições, onde sentavam meus pais e os meus dois irmãos mais velhos; os
outros, sentavam no chão; na verdade, minha mãe diz que, até os quatro anos de idade,
vivíamos arrastando a bunda pelo chão, ora brincando com os bichos ora “comendo
barro”.
Tínhamos
um ferro de passar roupa, à brasa, que só era usado em ocasiões muito
especiais, quando, por exemplo, íamos à feira de Paulo Jacinto ou de Viçosa – nosso maior momento de lazer. Lá, ficávamos
encantados com os cantadores de viola, as bandas de pífano e as histórias de
cordel. Tínhamos um banco de pelar porco, que ficava no quintal; duas camas de
casal com colchão de capim, costurado com pano de chita. Numa cama, dormiam os
meus pais e, na outra, dormiam eu e os meus três irmãos. Tínhamos um pote de
barro e uma quartinha (espécie de miniatura de pote), que serviam para
conservar a nossa água sempre fresca e pronta para beber. Tínhamos um pilão
para socar o café e milho. Lembro ainda que havia uma imagem do Sagrado Coração
de Jesus, uma da Santa Maria e outra do Padre Cícero – formando a Santíssima Trindade
do nordestino – o que era comum em quase todas as casas do lugar. E,
finalmente, tínhamos uma cacimba, que era nosso reservatório de água.
A
fazenda Conceição era um lugar marcado pelas mazelas da pobreza: desemprego,
fome, doenças e mortalidade infantil – era uma reprodução microcossocial do que
era Alagoas na época. Para os meus pais, a vida sempre foi difícil. A vida de
agregado da fazenda era uma relação de dependência com o proprietário, sem
perspectiva alguma de sair do ciclo de pobreza da região. Foi, justamente, para
tentar escapar dessa realidade que eles viveram, cerca de dois anos,
peregrinando no Sul e Sudeste do país (em busca de trabalho), até serem levados
para uma fazenda de algodão no interior do Paraná – num lugar ermo, de mata
fechada – onde passaram a viver, quase um ano, em regime de semiescravidão.
Vidas em fuga, em busca da
liberdade (dignidade)
A
jornada começa com a fuga de casa. Meus avôs, pais da minha mãe, não aprovavam
o namoro dela com o meu pai, principalmente meu vô, que já havia arrumado um
pretendente para ela. O jeito encontrado pelos dois foi fugir de casa e casar
na Viçosa. Sem muitas perspectivas na fazenda Conceição e fugidos, eles
resolveram tentar a vida em São Paulo, onde já viviam duas irmãs da minha mãe.
Chegando lá, procuraram muito, mas não encontram minhas tias. Foram, então,
para a Migração, instituição responsável
pelo acolhimento de migrantes, garantindo-lhes alimentação e alojamento, até
que estes pudessem encontrar um destino ou trabalho. Foi aí que meus pais
resolveram ir à Linha Noroeste (na cidade de Guaimbê-SP) procurar o primo do
meu pai. Meu pai arrumou emprego numa ponte sobre o rio Tibiriçá. Foi aí que
ele começou a receber um salário suficiente para comprar a feira do mês.
Entretanto, depois de alguns meses de trabalho, o Exército apareceu para
alistar os trabalhadores. Sem querer servir nas forças armadas e ter que mandar
minha mãe de volta à Alagoas, meu pai resolveu pedir as contas e pegar a
estrada novamente.
Entre
as cidades de Santos (trabalhando numa oficina) e Raposo Tavares (trabalhando numa
plantação de banana), foram meses tentando alguma estabilidade no emprego, mas
nada dava certo, até chegar à Linha Sorocabana, onde arrumaram emprego na
colheita de amendoim. Ao terminar a colheita, surgiu um boato de que havia uma
boa oportunidade numa fazenda de algodão, no Paraná.
Depois
de alguns dias de trabalho nessa fazenda, não demorou muito e logo descobriram
que se tratava de trabalho escravo, situado numa área de mata fechada. Cada
família passou a viver numa casinha de madeira pequena. Acordavam de madrugada,
no frio, para colher algodão. A alimentação era a base do que a mata oferecia,
principalmente, milho e abóbora. Minha mãe diz ter perdido as contas de quantas
vezes foi preciso fazer pipoca pra não passar fome. Não existia barracão para
venda de alimentos. Até as ferramentas de trabalho eram vendidas “fiado” e
nunca receberam um centavo como salário. Minha mãe chorava todos os dias,
arrependida de ter fugido com o meu pai. Havia descoberto o óbvio: o trabalho
era à sua escravidão.
Quando
qualquer trabalhador reclamava dessa condição, eles eram ameaçados de morte
pelos capangas. Parecia não haver saída. A fuga era quase impossível numa mata
inóspita e desconhecida. Depois de alguns meses de sofrimento e ameaças
constantes, meu pai conseguiu articular um plano de fuga, ao sensibilizar um
caminhoneiro da fazenda. Tratava-se de sair escondido de carona no caminhão –
ele e minha mãe – na calada escuridão da madrugada. O plano foi um sucesso.
Conquistada
a liberdade, o objetivo era refazer o sonho na Linha Sorocabana. O problema era
que eles não tinham como pagar o transporte. Sem dinheiro, o jeito foi apelar
para o acaso, sorte ou desespero. Meu pai diz que chegou a pegar uns três
ônibus sem nenhum centavo. Quando o motorista cobrava a passagem, ele hesitava
com medo, mas a determinação para voltar pra casa maior. Dizia que não tinha
passagem e nem dinheiro para pagar transporte algum. Ele falava da experiência
na fazenda de algodão. E mesmo com receio do que poderia acontecer, afirmava
que estava disposto a tudo para chegar ao seu destino e que não desceria do
ônibus de jeito nenhum. Numa mistura de desespero, coragem e medo os meus pais
conseguiram voltar à Linha Sorocabana para trabalhar na colheita de amendoim,
até conseguir dinheiro para voltar à Alagoas.
De volta à fazenda Conceição
Depois
dessa experiência frustrada, restava o caminho de volta à fazenda Conceição. É
verdade que a sua terra natal não oferecia muito futuro, mas era o lugar da
família e, pelo menos, não corriam o risco de viver no cativeiro ou de passar
fome. Minha mãe diz que ainda teve a sorte de não engravidar no Paraná, pois
logo após a sua volta à fazenda Conceição, nasceram os meus dois primeiros
irmãos.
Sou
o terceiro, depois do meu irmão Zé Nilton (José Leite da Silva); o mais velho,
pois existe outro José Leite da Silva, que chamamos de Ailton (o terceiro mais
novo) e da minha irmã Zenilda (Maria Leite da Silva). São três irmãos que são
conhecidos por nomes completamente diferentes do que foram registrados no
cartório. Minha mãe conta que o povo do interior, onde ela morava, tinha o
costume de colocar o nome de José em todos aqueles que nasciam laçados pelo
umbigo – por isso os dois nomes iguais – e como no interior tinha muito José e
muita Maria, ela resolveu criar os nomes diferentes do registrado, apenas para
diferenciar.
A
morte prematura dos meus dois primeiros irmãos (Maria José e Antonio Carlos)
era a evidência de que a vida no interior de Alagoas não era nada fácil. Era
uma menina de cinco meses e um menino de dois anos de idade. Minha mãe não sabe
bem por que eles morreram, mas, hoje, já sabemos que nas condições em que se
vivia na zona rural a morte estava sempre à espreita. Apesar de não passarmos
fome, nossa alimentação era pouca e dependíamos sempre da plantação feita no
quintal de casa. Não havia saneamento básico ou rede de esgoto. Não havia posto
de saúde ou médico. Tudo isso favorecia a desnutrição e a mortalidade infantil
da maioria das crianças que nascia no lugar.
O
único tratamento para as mazelas da pobreza era a reza e as plantas medicinais;
rezava-se por intermédio de uma rezadeira ou do Padre Cícero, do Juazeiro do
Norte. A rezadeira era uma espécie de médica e profeta ao mesmo tempo. Ela
orava e medicava com ervas, de acordo com a doença. Minha mãe lembra da
rezadeira D. Tereza Ângelo dos Santos, que curava mau olhado, engasgo e outras
doenças do corpo e do espírito. Para tirar o mau olhado, por exemplo, era
preciso de uma planta chamada vassourinha; em seguida, começava o ritual de
cura dizendo: “em nome do Pai, Filho e Espírito Santo, com dois te botaram, com
três eu tiro, com o poder de Deus e da Virgem Maria”; depois, dava uma sacudida
na planta e quando ela murchava, era sinal de que havia muito mau olhado. Fazia-se
esta reza três vezes.
O
meu pai fala do meu bisavô, Juvêncio Barbosa Bispo, que era um rezador famoso
da região, curava doença de gente e de bicho. Ele era procurado por todo tipo
de gente para curar mordida de cobra, mau olhado ou qualquer outro tipo de
doença. Por conta dessas curas, meu bisavô ganhava muitos presentes: galinha,
bode e até boi. Um exemplo dado por meu pai foi quando meu bisavô ganhou um boi
de um fazendeiro, depois de ter curado um bicho da Fazenda dele. A cura não
poderia ser paga, mas se fosse retribuída em forma de presente não tinha problema.
Depois
de ter lido o livro A História Escrita no
Chão, do professor Sávio de Almeida, é que pude conhecer melhor o poder da
ciência do povo e, consequentemente, a complexidade do saber-fazer da medicina
popular. Antes, minha ideia de saber popular era a de “folclore”, com todo o
estigma que essa palavra carrega, como espécie de saber menor, restrito a
“crendice” dos mais velhos e de pouca credibilidade. O livro derrubou alguns
preconceitos, muitas vezes, reforçados tanto pela academia quanto pelo senso
comum. Nele foi possível encontrar vários tipos de ervas e rituais de cura
criados pelo povo do interior, em especial da fazenda Vitória do Periperi (Boca
da Mata), onde “doença e flora formam a unidade indivisível entre o mundo real
e o fantástico” (ALMEIDA, 1997, p. 165). É interessante ver a variedade de
ervas e orações, inclusive um abecedário
de ervas e raízes de 1788, criado por Tomaz José de Melo Gonçalves citado pelo
autor.
A
lista é grande da flora medicinal e de rezas para cura. Tem reza para mau
olhado (já citada), para engasgo; tem erva para estancar sangue de um corte
(leite de bananeira, jucá no álcool), para inflamação de garganta (aroeira,
barbatimão), para dor de barriga (hortelã da folha miúda, capim santo e
cidreira), para doença dos rins (a folha do abacate e do croaçá), para acabar
com os vermes (batata de purga na banana); garrafada de diversas raízes que
serve para dor de coluna, dor nos ossos... (ALMEIDA, 1997, p. 165-182). Embora
já existam pesquisas científicas que comprovam a eficácia de algumas plantas
medicinais, o povo faz a sua própria ciência do mato, com base no cotidiano da
vida e no “fantástico” da fé.
O
fato é que não existe prova científica para essas curas, e não precisa, pois a
tradição oral e a crença popular se encarregam de passar para as outras
gerações o poder das rezas e plantas; e ganha credibilidade, na medida em que
aquele que passa já viveu a experiência ou conhece um caso bem sucedido, seja
na família ou de um amigo. Este é o caso da minha família, onde meus dois
irmãos (Zé Nilton e Ailton) foram curados pelas ervas e promessas feitas por
minha mãe ao Padre Cícero do Juazeiro.
Em
casos de doenças mais graves, fazia-se promessas aos “santos” nordestinos, a
exemplo de Frei Damião, Santa Quitéria e, principalmente, o Padre Cícero, que
embora não fosse reconhecido pela hierarquia da Igreja, sempre foi considerado
um santo para o povo nordestino, inclusive para os meus pais. A prova disso
aconteceu com os meus irmãos Zé Nilton e Ailton, que, segundo a minha mãe,
depois de viverem boa parte da infância à beira da morte, as promessas feitas
ao Padre Cícero os curou. Não é por acaso que, até hoje, todos os anos, meus
pais vão ao Juazeiro.
As brincadeiras de infância
Mas
a fazenda não era apenas pobreza e doença, ela era também, para nós crianças,
um mundo de brincadeiras e imaginações. Das brincadeiras, lembro dos carrinhos
de madeira que o meu primo Carlinhos fazia. Ele era uma espécie de artesão da
fazenda. Sua especialidade era caminhão de madeira, que, geralmente, substituía
os carros de boi das famílias mais pobres. Embora fosse um transporte de carga
para muita gente do lugar; para mim, era uma viagem fantástica, que eu adorava
pegar uma carona.
Lembro
também das brincadeiras no rio dos Veados, onde minha mãe lavava as roupas e as
panelas de casa. Era um rio pequeno e raso, mas muito bom para tomar banho. Não
sei o porquê do nome, mas isso pouco importava para os moradores, pois todos
dependiam dele. Às vezes, apareciam umas “cobras nadadeiras”, que não eram
venenosas, mas botavam a gente pra correr. Nem as schistosomas tiravam a gente
do rio. Por causa delas fui internado em Maceió para fazer um tratamento de
verme.
Lembro ainda das brincadeiras no colégio da fazenda. Era um velho colégio, praticamente abandonado, apenas
algumas salas de aula funcionavam. Não cheguei a estudar lá, embora minha mãe
tivesse sido professora do Mobral, uma espécie de programa de alfabetização de jovens
e adultos criado pelo regime militar. Para as crianças, o colégio só existia como espaço lúdico. Criávamos uma casa
imaginária, fazendo de conta que as mesas e cadeiras eram os móveis e a sala de
aula a casa. Brincávamos também de esconde-esconde à noite.
De
todas as brincadeiras, a mais gostosa e perigosa era “roubar” manga e jaca nos
sítios vizinhos. É claro que tínhamos medo de levar um tiro de espingarda soca-tempero
ou de levar uma surra dos nossos pais, mas a sede de aventura e a fome de manga
eram mais fortes do que a gente. Entretanto, esse mundo de fantasia só existia
para as crianças. Aos adultos, restava enfrentar as vicissitudes das relações
de dependência com o proprietário da fazenda.
A vida era difícil na fazenda, conforme já
afirmamos anteriormente. A terra era pouca; plantava-se apenas o suficiente
para sustentar a família e pagar o uso da terra, numa espécie de economia de
subsistência. Sem perspectiva, o êxodo rural foi a saída para a maioria dos
moradores da fazenda, reproduzindo o destino retirante de Morte e Vida Severina, contada em verso e prosa por João Cabral de
Melo Neto ou de Vidas Secas de
Graciliano Ramos. Nessa nova retirada do interior, meus pais não queriam
repetir o erro da experiência vivenciada nas matas do Mato Grosso. Decidiram
tentar a vida na capital, onde já moravam dois irmãos do meu pai, tio Severino
e tio Cicinho.
A vinda para a capital
Maceió
do final da década de 1970 e início da década de 1980 vivia o fenômeno da
expansão urbana, provocada por dois fatores fundamentais: o êxodo rural e a
especulação imobiliária. Vários fatores influenciaram o êxodo no campo, mas,
sem dúvida, a expansão da agroindústria do açúcar nesse período teve um papel
decisivo. Em seu clássico Usinas e
Destilarias de Alagoas, Manoel Correia de Andrade mostra que a expansão das
usinas para os tabuleiros a partir da década de 1950 e o aumento vertiginoso da
produção de açúcar, entre os anos 1970 e 1980, provocou uma série de impactos
na vida do homem do campo (1997, p. 98-99). Isto significou, entre outras
consequências, a necessidade de mais terras para plantação do canavial e a
expulsão dos pequenos agricultores das suas áreas cultivadas; sobretudo, daqueles
que moravam como agregados ou arrendatários nas fazendas, a exemplo dos meus
pais.
Já
especulação imobiliária teve como consequência a invasão do grande capital nas
áreas de subsistência e vida dos pescadores – sobretudo para os que viviam do mar
– construindo edifícios, hotéis e mansões para a elite e para os turistas
apreciarem as nossas belezas naturais. Era o fim das casas de pau a pique dos
pescadores e pobres, empurrando-os para as vilas e favelas da orla ou para as
zonas periféricas e grotões da cidade, juntando-se aos pobres migrantes que
vinham do interior. Era a nossa modernidade tardia, conforme afirma Edson
Bezerra, em seu Manifesto Sururu
(2006), “erguida sobre os terreiros dos negros e das moradas dos pobres”.
Essa
foi a Maceió que a minha família encontrou no final da década de 1970. A cidade
mudava e com ela precisávamos aprender a mudar também. Logo perceberíamos que o
sonho da vida moderna na capital se transformara no atraso da vida rural no
interior, a pobreza.
A
mudança ocorre no final da década de 1970. Depois de juntar algum dinheiro com
a venda de alguns animais de criação e da colheita de algumas roças, o meu pai
conseguiu comprar uma casa de taipa no bairro do Jacintinho, rua Bonfim. Era
uma casa muito pequena (cerca de cinquenta a sessenta metros quadrados): uma
sala, dois quartos e uma cozinha – embora tivesse um quintal que nos mantinha
ligados às lembranças do interior, com um pé de carambola e algumas plantas
domésticas.
O
Jacintinho era um dos poucos bairros da capital que abrigava os migrantes
vindos do interior do Estado. Era um bairro formado por alguns sítios e cercado
por muitas grotas e com pouca infraestrutura: faltava saneamento básico na
maioria das ruas, água encanada. A prestação de serviço público era precária: só
havia uma escola e um posto de saúde. Os ônibus eram velhos e insuficientes
para atender a população.
Era
preciso aprender a viver na capital, e isto significava decifrar os códigos de
convivência do bairro e encontrar alguma forma de renda. Apesar de analfabeto,
meu pai sempre foi muito trabalhador. Não demorou muito para encontrar emprego
na Sococo, empresa especializada no beneficiamento de coco, que ficava a uns
300m da nossa casa. Como não tinha profissão definida, ele era uma espécie de
“serviços gerais” da empresa. Já minha mãe, por ter sido professorinha do
interior, resolveu dar aula de alfabetização para alguns parentes e vizinhos
mais próximos; porém, recebia mais agrados do que dinheiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário