Luiz Sávio de Almeida. Meu velho diário e a macumba nas Alagoas
Texto publicado em Contexto de 20 de novembro de 2011 em
Tribuna Independente. Para este blog, estamos utilizando material
digitalizado e com gerenciamento das imagens realizado por Kellyson
Ferreira, com a coordenação do Professor Antônio Daniel Marinho.
Um pequeno bilhete sobre a Macumba nas Alagoas
Luiz Sávio de Almeida
O
mês é de negro, como o ano todo deveria ser. Tomei a liberdade de abrir
o meu Diário e escancarar um pedaço, aqui em Contexto. Há problema: o
texto não foi escrito para ser publi-' cado, mas como espécie deajuste
de conta pessoal. No entanto, quem sabe ele seria interessante
depoimento sobre a vida cultural de uma época alagoana? Vamos em frente
que atrás vem gente! Fica um grande abraço de Contexto aos que se foram e
aos que estão na vida desanto. Nada existe melhor do que a garantia
constitucional da liberdade de culto. Esperem! Estou errado: nada melhor
do que efetivamente existir a liberdade.
Quero
prestar uma homenagem à memória de Clóvis Moura, um amigo praticamente
irmão sobre quem organizei um livro, prefaciei um dos seus e escrevi um
texto em outro por ele organizado. Prestar uma homenagem ao Edson
Carneiro que ouvia, pacientemente, as minhas arengas de menino; ao Joel
Rufino que me ensinou a plasticidade de ser negro e ao Mário Maestri que
me forneceu base sobre inúmeros pontos da história negra. No próximo,
falarei de minha gente alagoana.
Sávio de AÍmeida
Meu velho diário e a macumba nas Alagoas
Luiz Sávio de Almeida
Algumas
singelas recordações ajudam a situar este texto, que não pode ser
pensado além de simples depoimento, espécie de testemunho. O tema das
“religiões afro-brasileiras” sempre me foi caro, embora o tivesse
deixado, na medida em que fui passando de interesse centrado na
antropologia para formação acadêmica em história, retornando a uma
espécie de vocação descoberta pelos idos dos 14 anos de idade e, de
certa forma, ajudado por Félix Lima Júnior. O Rio Una sabe da minha
história, conhece o fascínio que me despertavam os livros sobre
folclore, história e como eu andava pela Biblioteca Pública Municipal de
Palmares, cidade pernambucana onde vivi parte da adolescência e onde
existiu a famosa Biblioteca do Clube Lítero-Recreativo.
Na
medida em que sondava sobre o que iria dar o depoimento sobre o mundo
negro, entendi que não podia ficar em mera evocação, pois tocava em
algumas veleidades de natureza “científica”, palavra grifada para
acentuar certa antipatia que me desperta, da mesma forma como grifei
“religiões afro- -brasileiras” expressão que possivelmente nem de longe
raspa a densidade do que se chama Xangô em Alagoas, também conhecido
como seita por muitos dos velhos amigos com quem convivi pelos terreiros
de Maceió durante uns dois densos e consecutivos anos, lá pelos tempos
dos sessenta, inclusive na companhia de Marcelo Texeira, Bráulio Leite
Júnior que ainda estão mais vivos do que eu, que já me considero
excelente candidato a fantasma.
A
construção do texto tornou-se um problema; como fazer a escrita
comportar a evocação, o testemunho e ainda por cima caracterizar uma
linha de informações conseqüentes e úteis sobre os temas enfocados?
Desde o início, tomei uma decisão: o tom coloquial seria a marca desta
anotação, mas posto de modo a não perder a precisão, devido à
objetividade que deveria ser a característica fundamental. Por outro
lado, o trabalho não poderia ser uma espécie de divertimento de quem vai
encontrando pedaços de sua própria vida ao remexer em velho e amarelado
arquivo.
A ANDANÇA PESSOAL.
É
preciso dar um salto de Palmares para Maceió e antes para Natal no Rio
Grande do Norte, onde conheci Cascudo. Aqui fiz uma amizade que marcou
muito do que tento realizar; conheci o Professor Theo Brandão, pessoa de
finíssima inteligência, pròporcionando-nos uma obra rica e inestimável,
pronta para ser rediscutida, retrabalhada, buscar sua significação
real. Era médico, como muitos dos intelectuais de sua geração.
Theo
argumentava que o estudo das tais religiões havia sido negligenciado em
Alagoas, apesar de Arthur Ramos ser do Pilar, mas cuja obra foi
fundamentalmente baiana. Era como se houvesse uma cobrança de sua parte:
era daqui e qual a razão de não ter estudado? Quando perguntado pelas
suas razões, Theo respondia não sentir-se com base suficiente para
enfrentar o tema e, também, não desejava afastar-se do que vinha sendo a
sua preocupação: folguedos e literatura popular, especialmente contos.
Daí, insistia comigo para cair na área - deve ter feito o mesmo com
outros -, pesquisar, estudar e talvez daí - quem sabe? - tenha
influenciado Marilu Gusmão (de saudosa memória) a tratar do tema.
Na
verdade, quase todos os dias em que conversávamos batíamos na história
do afro- -brasileiro, várias vezes com a presença do Carlos Moliterno,
que não se interessava pelo assunto. Formava-se, como se dizia, uma
chacrinha. E na verdade o Theo encontrava uma pequena platéia para
escutá-lo. Em virtude da grande influência que o Theo tinha sobre mim,
fui pouco a pouco me aproximando dos terreiros, mormente através de um
amigo: o finado Celestino. Celestino era da Secretaria de Educação,
muito ligado à turma da Igreja de São Benedito. Celestino, Belarmino,
Joca e Luiz Marinho (todos da seita, da lei, da religião) foram
companheiros de muitas andadas por Maceió. Celestino era Babalo- rixa
Ijexá, Luiz Marinho era Nagô; Joca (falecido) era pedreiro e Belarmino
era coronel da polícia. Ele e eu somos os únicos vivos do quarteto. Não
perdiámos uma saída de Iaô, sempre maravilhosa noite de festa.
Foi
através do Celestino que me aproximei da Federação dos Cultos
Afro-Brasileiros de Alagoas, entidade que tinha sede na Ponta Grossa.
Não me lembro da rua, mas sei que era perto do terreiro do Luiz Marinho.
Além de Babalorixá, Luiz Marinho tinha uma banca de vender sapatos no
mercado, lados da Feira do Passarinho, perto de um outro Luiz que me
vendia folheto de feira e revista velha. Os dois já foram desta para
melhor.
O
fato é que passei uns dois anos coletando material sobre inúmeros
terreiros que existiam em Maceió, gravei, entrevistei, fotografei,
filmei... Era um trabalho constante, enquanto lia a bibliografia
aconselhada pelo Theo Brandão, num improviso de leitura que Maceió
obrigava. Não se ia muito além de Edson Carneiro, Roger Bastide, Arthur
Ramos...
Era
para ler o que se podia dispor naquele tempo, especialmente na
biblioteca do professor. Pouco a pouco, contudo, fui me distanciando do
tema, mas guardava o material com extremo cuidado, consciente de sua
importância futura para algum pesquisador que se atrevesse no ramo.
Hoje,
sem dúvida, seria de primeira linha, mas a vida tem passos que podem
ser considerados terríveis. Por razões de doenças na família, tive que
deixar a documentação armazenada em lugar impróprio e, por descuido mais
do que imperdoável, o cupim a tudo comeu, restando um denada,
insignificância frente ao volume original. Apenas restaram umas poucas
notas e um caderno com o endereço de 185 casas de culto. Não é material
de grande importância, quando comparado a umas dez pastas que se chamava
de AZ; o conteúdo é extremamente inferior ao que foi destruído. No
entanto, decidi dar um arranjo ligeiro e publicar o que sobrou. A
certeza da utilidade jamais deixou de estar presente, pois os
depoimentos deste tipo, ajudam a construir um pouco a história da
cultura em Alagoas
UMA AFIRMATIVA DO THEO
Volto
ao fato de que Theo identificava um afastamento da inteligência
alagoana, dos temas relativos aos cultos afro-brasileiros. Eu não me
lembro dos motivos e das razões que apresentava para o fato. No entanto,
tomando o mote, admito a possibilidade de que a temática virou espécie
de tabu intelectual pelo fato de ser negra.
O
fundamental nos comentários do Theo, era a guarda de aura de mistério,
indicando que deveria ser resolvido. Para mim, a questão hoje passa
pelos momentos integrados da sociedade, Estado e da própria
inteligência.
Discutir
a temática é instigante e chego a pensar que, neste contexto, a
discussão tem peso bem maior do que a própria conclusão. Para mim e
tratarei disto em outros depoimentos, em grande parte tem-se o
privilegiamento ibérico do folclorismo alagoano: o senhorial sempre foi
ibérico e o folclorismo alagoano não ia ao povo, mas ao velho reduto
ibérico, salvo desvios acontecidos nessa rota. Seria muito difícil
encontrar guarida para este iberismo nos terreiros de xangô, pois mesmo a
composição santo/orixá era decretada pelo lado negro da identidade ou,
melhor dizendo, da similaridade construída e difundida.
A MATRIZ DO POLICIALESCO
E
dentro desse espaço aberto de discussão sobre o tema, que entedemos não
ser possível deixar de levar em conta o papel da formalização do mando
desde os tempos coloniais. Esse é um dado óbvio, sendo tão lugar comum
quanto é considerar o império do católico, determinado, oficialmente,
como a ligação preferencial entre o sagrado e o profano. Para a
discussão, seria interessante trabalhar a mudança do perfil do controle e
de ajustamento, que se vai processando - embora lentamente - e que
emerge de modo claro nos finais do século XIX e princípios do século XX
nas Alagoas. Seria inevitável pela própria natureza do escravismo, que
fosse sendo construída uma malha negra de relações urbana, pois o negro
estava e fazia-se dentro da Capital da Província. A manutenção do
escravo enquanto base da força de trabalho de uma economia
fundamentalmente agro- -exportadora, em nada evitava o estar e fazer-se
dentro do urbano. Talvez quem sabe, a montagem dos cultos jamais poderia
ser rural, embora o orixá estivesse nas senzalas e na cabroeira que se
formava.
Nesse
itinerário, o escravo - pardo ou negro - estava ligado ao preto livre,
aos africanos livres e insinuam-se e encontram lugares típicos na
formação urbana de Maceió para estarem e construírem um modo de ser
urbano. Inclusive, pontos da cidade foram sendo demarcados por densidade
de presença negra, como Jaraguá, por onde se tem o papel da enseada do
mesmo nome, funcionando como fundeadouro e articulação entre os mercados
interno e externo.
A
presença negra era verificada na Levada, outra espécie de articulação
de mercado. Aliás, a presença de africanos livres na região foi de tal
ordem que chegaram a serem acusados de controle do abastecimento, o que
termina em posturas para colocarem freio no comércio. Se escravo fugido
corria para os lados da Contigui- ba, é que não se fazia notado com
facilidade.
E
possível falar de muitos lugares em que se tinha a presença negra em
Maceió. No entanto, o que nos interessa é extremamente simples: a
urbanização de Maceió e a abolição demarcam a possibilidade de novas
formas de relação entre brancos e negros em Maceió; muda o modo e a
forma do contexto de opressão, embora ele permaneça, inclusive como
fundamento de mentalidade. No entanto, se a cidade era multico- lorida,
com seus negros, brancos e pardos, o mando era senhorial e a mentalidade
desse grupo mantinha os mesmos princípios de exclusão que foram
praticados e fundados no contexto do escravismo. As transformações
ocorridas na área econômica, não deslocaram o complexo senhorial do
preconceito e nem a engenharia política de manter o negro em seu lugar,
exercício estratégico de dominação.
O
desígnio branco argumentava que a cidade tinha negros, mas jamais
poderia ser também dos negros. Desse modo, o enfático dos terreiros -
por mais longínquos que estivessem das partes nobres - fazia com que os
templos estivessem sempre próximos, pois havia uma articulação de mando
anulando a distância física. Eles estavam afastados do centro, mas não
no urdimento do modo do poder institucionalizado.
No
entanto, e aí se encontra outro marco da questão, por mais excludente
que fosse a postura senhorial, o negro havia penetrado no modo de ser da
cidade e, inclusive, nos próprios mati- zamentos religiosos dos
brancos, como as devoções e as Irmanda- des demonstravam e, por outro
lado, as relações de poder não se procedem em mão única: existe uma
interferência dos dominados no universo da dominação. Essa afirmativa
tem um quê do Nobert Elias, mas, enfaticamente, o tema já estava numa
análise do patriarcal realizada por Gilberto Freyre em Casa Grande e
Senzala, embora com problemas seríssimos em sua argumentação e que não
vale discutir no corpo desse depoimento.
Por
outro lado, convém considerar que o senhorial tenderia a negar que
havia sido influenciado pelo negro e, para isso, usava muitas
estratégias. Nesse contexto de negação, a religião era fator por demais
evidente e o batuque de que tanto se resguardam os brancos na mixórdia
das posturas, não se referia apenas à folia. Não era matéria apenas da
folgança dos negros. A Inquisição andou interessada nesses batuques.
Sons negros, via religião, invadiram as ruas como símbolos do incômodo e
a terem múltiplas dimensões. A presença de negros publicamente era
controlada e se pode ter como exemplo as Posturas municipais da câmara
de São Miguel dos Campos, conforme a Lei n° 51 de 18 de Maio de 1846,
que proibia batuques, alaridos, vozerias a partir das nove horas da
noite, mas batuques, danças ou adjuntos de escravos não podiam ser
feitos em qualquer hora do dia. A intensificação das relações urbanas de
Maceió ocorre articulada a diversos fatores e, dentre eles, surge a
identificação do progresso como associada ao passo para a civilização. O
que vai assaltar o Brasil assalta Alagoas.
A
isso corresponde a necessidade de liberação de formas ditas bárbaras e é
fácil notar como se pode intensificar o preconceito em conjuntura desse
tipo: a barbaridade negra teria que
Meu velho diário e a macumba nas Alagoas
Luiz Sávio de Almeida
Algumas
singelas recordações ajudam a situar este texto, que não pode ser
pensado além de simples depoimento, espécie de testemunho. O tema das
“religiões afro-brasileiras” sempre me foi caro, embora o tivesse
deixado, na medida em que fui passando de interesse centrado na
antropologia para formação acadêmica em história, retornando a uma
espécie de vocação descoberta pelos idos dos 14 anos de idade e, de
certa forma, ajudado por Félix Lima Júnior. O Rio Una sabe da minha
história, conhece o fascínio que me despertavam os livros sobre
folclore, história e como eu andava pela Biblioteca Pública Municipal de
Palmares, cidade pernambucana onde vivi parte da adolescência e onde
existiu a famosa Biblioteca do Clube Lítero-Recreativo.
Na
medida em que sondava sobre o que iria dar o depoimento sobre o mundo
negro, entendi que não podia ficar em mera evocação, pois tocava em
algumas veleidades de natureza “científica”, palavra grifada para
acentuar certa antipatia que me desperta, da mesma forma como grifei
“religiões afro- -brasileiras” expressão que possivelmente nem de longe
raspa a densidade do que se chama Xangô em Alagoas, também conhecido
como seita por muitos dos velhos amigos com quem convivi pelos terreiros
de Maceió durante uns dois densos e consecutivos anos, lá pelos tempos
dos sessenta, inclusive na companhia de Marcelo Texeira, Bráulio Leite
Júnior que ainda estão mais vivos do que eu, que já me considero
excelente candidato a fantasma.
A
construção do texto tornou-se um problema; como fazer a escrita
comportar a evocação, o testemunho e ainda por cima caracterizar uma
linha de informações conseqüentes e úteis sobre os temas enfocados?
Desde o início, tomei uma decisão: o tom coloquial seria a marca desta
anotação, mas posto de modo a não perder a precisão, devido à
objetividade que deveria ser a característica fundamental. Por outro
lado, o trabalho não poderia ser uma espécie de divertimento de quem vai
encontrando pedaços de sua própria vida ao remexer em velho e amarelado
arquivo.
A ANDANÇA PESSOAL.
É
preciso dar um salto de Palmares para Maceió e antes para Natal no Rio
Grande do Norte, onde conheci Cascudo. Aqui fiz uma amizade que marcou
muito do que tento realizar; conheci o Professor Theo Brandão, pessoa de
finíssima inteligência, pròporcionando-nos uma obra rica e inestimável,
pronta para ser rediscutida, retrabalhada, buscar sua significação
real. Era médico, como muitos dos intelectuais de sua geração.
Theo
argumentava que o estudo das tais religiões havia sido negligenciado em
Alagoas, apesar de Arthur Ramos ser do Pilar, mas cuja obra foi
fundamentalmente baiana. Era como se houvesse uma cobrança de sua parte:
era daqui e qual a razão de não ter estudado? Quando perguntado pelas
suas razões, Theo respondia não sentir-se com base suficiente para
enfrentar o tema e, também, não desejava afastar-se do que vinha sendo a
sua preocupação: folguedos e literatura popular, especialmente contos.
Daí, insistia comigo para cair na área - deve ter feito o mesmo com
outros -, pesquisar, estudar e talvez daí - quem sabe? - tenha
influenciado Marilu Gusmão (de saudosa memória) a tratar do tema.
Na
verdade, quase todos os dias em que conversávamos batíamos na história
do afro- -brasileiro, várias vezes com a presença do Carlos Moliterno,
que não se interessava pelo assunto. Formava-se, como se dizia, uma
chacrinha. E na verdade o Theo encontrava uma pequena platéia para
escutá-lo. Em virtude da grande influência que o Theo tinha sobre mim,
fui pouco a pouco me aproximando dos terreiros, mormente através de um
amigo: o finado Celestino. Celestino era da Secretaria de Educação,
muito ligado à turma da Igreja de São Benedito. Celestino, Belarmino,
Joca e Luiz Marinho (todos da seita, da lei, da religião) foram
companheiros de muitas andadas por Maceió. Celestino era Babalo- rixa
Ijexá, Luiz Marinho era Nagô; Joca (falecido) era pedreiro e Belarmino
era coronel da polícia. Ele e eu somos os únicos vivos do quarteto. Não
perdiámos uma saída de Iaô, sempre maravilhosa noite de festa.
Foi
através do Celestino que me aproximei da Federação dos Cultos
Afro-Brasileiros de Alagoas, entidade que tinha sede na Ponta Grossa.
Não me lembro da rua, mas sei que era perto do terreiro do Luiz Marinho.
Além de Babalorixá, Luiz Marinho tinha uma banca de vender sapatos no
mercado, lados da Feira do Passarinho, perto de um outro Luiz que me
vendia folheto de feira e revista velha. Os dois já foram desta para
melhor.
O
fato é que passei uns dois anos coletando material sobre inúmeros
terreiros que existiam em Maceió, gravei, entrevistei, fotografei,
filmei... Era um trabalho constante, enquanto lia a bibliografia
aconselhada pelo Theo Brandão, num improviso de leitura que Maceió
obrigava. Não se ia muito além de Edson Carneiro, Roger Bastide, Arthur
Ramos...
Era
para ler o que se podia dispor naquele tempo, especialmente na
biblioteca do professor. Pouco a pouco, contudo, fui me distanciando do
tema, mas guardava o material com extremo cuidado, consciente de sua
importância futura para algum pesquisador que se atrevesse no ramo.
Hoje,
sem dúvida, seria de primeira linha, mas a vida tem passos que podem
ser considerados terríveis. Por razões de doenças na família, tive que
deixar a documentação armazenada em lugar impróprio e, por descuido mais
do que imperdoável, o cupim a tudo comeu, restando um denada,
insignificância frente ao volume original. Apenas restaram umas poucas
notas e um caderno com o endereço de 185 casas de culto. Não é material
de grande importância, quando comparado a umas dez pastas que se chamava
de AZ; o conteúdo é extremamente inferior ao que foi destruído. No
entanto, decidi dar um arranjo ligeiro e publicar o que sobrou. A
certeza da utilidade jamais deixou de estar presente, pois os
depoimentos deste tipo, ajudam a construir um pouco a história da
cultura em Alagoas
UMA AFIRMATIVA DO THEO
Volto
ao fato de que Theo identificava um afastamento da inteligência
alagoana, dos temas relativos aos cultos afro-brasileiros. Eu não me
lembro dos motivos e das razões que apresentava para o fato. No entanto,
tomando o mote, admito a possibilidade de que a temática virou espécie
de tabu intelectual pelo fato de ser negra.
O
fundamental nos comentários do Theo, era a guarda de aura de mistério,
indicando que deveria ser resolvido. Para mim, a questão hoje passa
pelos momentos integrados da sociedade, Estado e da própria
inteligência.
Discutir
a temática é instigante e chego a pensar que, neste contexto, a
discussão tem peso bem maior do que a própria conclusão. Para mim e
tratarei disto em outros depoimentos, em grande parte tem-se o
privilegiamento ibérico do folclorismo alagoano: o senhorial sempre foi
ibérico e o folclorismo alagoano não ia ao povo, mas ao velho reduto
ibérico, salvo desvios acontecidos nessa rota. Seria muito difícil
encontrar guarida para este iberismo nos terreiros de xangô, pois mesmo a
composição santo/orixá era decretada pelo lado negro da identidade ou,
melhor dizendo, da similaridade construída e difundida.
A MATRIZ DO POLICIALESCO
E
dentro desse espaço aberto de discussão sobre o tema, que entedemos não
ser possível deixar de levar em conta o papel da formalização do mando
desde os tempos coloniais. Esse é um dado óbvio, sendo tão lugar comum
quanto é considerar o império do católico, determinado, oficialmente,
como a ligação preferencial entre o sagrado e o profano. Para a
discussão, seria interessante trabalhar a mudança do perfil do controle e
de ajustamento, que se vai processando - embora lentamente - e que
emerge de modo claro nos finais do século XIX e princípios do século XX
nas Alagoas. Seria inevitável pela própria natureza do escravismo, que
fosse sendo construída uma malha negra de relações urbana, pois o negro
estava e fazia-se dentro da Capital da Província. A manutenção do
escravo enquanto base da força de trabalho de uma economia
fundamentalmente agro- -exportadora, em nada evitava o estar e fazer-se
dentro do urbano. Talvez quem sabe, a montagem dos cultos jamais poderia
ser rural, embora o orixá estivesse nas senzalas e na cabroeira que se
formava.
Nesse
itinerário, o escravo - pardo ou negro - estava ligado ao preto livre,
aos africanos livres e insinuam-se e encontram lugares típicos na
formação urbana de Maceió para estarem e construírem um modo de ser
urbano. Inclusive, pontos da cidade foram sendo demarcados por densidade
de presença negra, como Jaraguá, por onde se tem o papel da enseada do
mesmo nome, funcionando como fundeadouro e articulação entre os mercados
interno e externo.
A
presença negra era verificada na Levada, outra espécie de articulação
de mercado. Aliás, a presença de africanos livres na região foi de tal
ordem que chegaram a serem acusados de controle do abastecimento, o que
termina em posturas para colocarem freio no comércio. Se escravo fugido
corria para os lados da Contigui- ba, é que não se fazia notado com
facilidade.
E
possível falar de muitos lugares em que se tinha a presença negra em
Maceió. No entanto, o que nos interessa é extremamente simples: a
urbanização de Maceió e a abolição demarcam a possibilidade de novas
formas de relação entre brancos e negros em Maceió; muda o modo e a
forma do contexto de opressão, embora ele permaneça, inclusive como
fundamento de mentalidade. No entanto, se a cidade era multico- lorida,
com seus negros, brancos e pardos, o mando era senhorial e a mentalidade
desse grupo mantinha os mesmos princípios de exclusão que foram
praticados e fundados no contexto do escravismo. As transformações
ocorridas na área econômica, não deslocaram o complexo senhorial do
preconceito e nem a engenharia política de manter o negro em seu lugar,
exercício estratégico de dominação.
O
desígnio branco argumentava que a cidade tinha negros, mas jamais
poderia ser também dos negros. Desse modo, o enfático dos terreiros -
por mais longínquos que estivessem das partes nobres - fazia com que os
templos estivessem sempre próximos, pois havia uma articulação de mando
anulando a distância física. Eles estavam afastados do centro, mas não
no urdimento do modo do poder institucionalizado.
No
entanto, e aí se encontra outro marco da questão, por mais excludente
que fosse a postura senhorial, o negro havia penetrado no modo de ser da
cidade e, inclusive, nos próprios mati- zamentos religiosos dos
brancos, como as devoções e as Irmanda- des demonstravam e, por outro
lado, as relações de poder não se procedem em mão única: existe uma
interferência dos dominados no universo da dominação. Essa afirmativa
tem um quê do Nobert Elias, mas, enfaticamente, o tema já estava numa
análise do patriarcal realizada por Gilberto Freyre em Casa Grande e
Senzala, embora com problemas seríssimos em sua argumentação e que não
vale discutir no corpo desse depoimento.
Por
outro lado, convém considerar que o senhorial tenderia a negar que
havia sido influenciado pelo negro e, para isso, usava muitas
estratégias. Nesse contexto de negação, a religião era fator por demais
evidente e o batuque de que tanto se resguardam os brancos na mixórdia
das posturas, não se referia apenas à folia. Não era matéria apenas da
folgança dos negros. A Inquisição andou interessada nesses batuques.
Sons negros, via religião, invadiram as ruas como símbolos do incômodo e
a terem múltiplas dimensões. A presença de negros publicamente era
controlada e se pode ter como exemplo as Posturas municipais da câmara
de São Miguel dos Campos, conforme a Lei n° 51 de 18 de Maio de 1846,
que proibia batuques, alaridos, vozerias a partir das nove horas da
noite, mas batuques, danças ou adjuntos de escravos não podiam ser
feitos em qualquer hora do dia. A intensificação das relações urbanas de
Maceió ocorre articulada a diversos fatores e, dentre eles, surge a
identificação do progresso como associada ao passo para a civilização. O
que vai assaltar o Brasil assalta Alagoas.
A
isso corresponde a necessidade de liberação de formas ditas bárbaras e é
fácil notar como se pode intensificar o preconceito
ser anulada. E é esse o clima que
se dá nos entorno da oligarquia dos Maltas, estando presente quando as
Salvações atingem as Alagoas e tem-se um novo e importante choque entre
as facções detentoras do mando. É o choque entre Lebas e Soberania.
Estamos,
na verdade, em um dos períodos decisivos da vida política alagoana.
Lebas x Soberania é tão fundamental para nosso século, quanto foram os
acontecimentos da década de quarenta do século XIX, quando, por exemplo,
da definição do partidismo gerado pelos Lisos e Cabeludos. Claro que
geram e se fazem em contextos diferentes, mas ambos são cruciais. No
começo do século XX serão contrapostos o progresso da Soberania e o
atraso dos Lebas.
E preciso, contudo, ter imenso cuidado para não se reduzir o
Quebra à história branca, tornando-o um episódio dela. Esta história do
Quebra somente faz sentido vista por baixo; caso contrário há uma
redução do negro ao branco e, mesmo sem querer, não sendo assim, pode
estabelecer uma linha similar aos argumentos dominantes. Apesar de suas
ligações com a base agrária, a Soberania tinha um quê urbano e de classe
média e é ela a construtora dos Lebas.
Há
uma diferença radical entre Lebas e Leba; um é o contexto senhorial e
outro é o contexto afro. A história que apreende o negro, é a história
do Quebra visto pelo Leba. Na verdade haveria um choque entre
Lebas/Soberania e Leba. E preciso separar o Leba do conjunto das frações
dominantes, deixar isso claro; o choque entre Lebas e Soberania era
conjuntura; o choque com o Leba era de feição estrutural.Lebas seriam os
partidismos maltistas e instalar a macumba dentro do Palácio do
Governo; equivalia à retirada da civilização e a introdução do diabólico
segundo a própria ótica branca.
Os
maltistas passavam a ser uma negrada branca. Esta utilização do negro é
infernal. O que pesa é o que atinge o Leba, como se estivesse
institucionalizada a dia- bolização do negro, embora Leba nada tivesse
com o diabo que não é, como se costuma dizer, uma criação africana. Leba
é uma correspondência ao Exu iorubano. Aliás, o caminho da diabolização
do Leba seria outro a ser percorrido numa boa investigação sobre os
cultos.
Foi
por causa dessa insistência do Theo Brandão, que tomei conhecimento da
Tia Marcelina, não a arrolada na parca literatura existente sobre o
Quebra, mas a de persistência na memória do povo da macumba. Eé desse
período que a Tia Marcelina emerge como um símbolo da resistência dos
cultos em Alagoas. Procurei por ela sistematicamente nos terreiros e
creio sinceramente, que houve uma sua invenção. Hoje penso, que o
verdadeiramente histórico foi sua reinvenção, a forma como ressurgiu e,
numa imagem que julgo desconcertante, a entendo ressuscitando após os
três dias.
É que se tornou uma fala e uma nova presença, indicando novos tempos e nisto, sem dúvida, nosso trabalho colaborou.
Quando comecei a andar pelos terreiros, na realidade, não estávamos tão
longe assim dos tempos do Quebra. Fazia menos de 50 anos e seria uma
probabilidade alta, encontrar quem a tivesse conhecido pessoalmente; não
encontrei. E conversei muito, pois sem dúvida, eu conhecia a maioria
das casas de culto em Maceió. No fundo, a Tia Marcelina era uma nova
realidade, a possibilidade de falar-se em resistência e símbolo. Foi o
que levantamos. E notava que meus companheiros Luiz Marinho, Celestino,
Joca e o Belarmino compraziam-se com a descoberta da Tia Marcelina e não
era raro seu nome aparecer no xequete nas noites de Iaô.
Fico
pensando o que teria sido construído se ao invés de Tia Marcelina fosse
revivido outro nome do Quebra. Estava evidente um fato que para mim
tornou-se base: não é preciso saber para ter memória e isto é o que faz o
belo e o andamento do mito. E preciso que se deixe a mania de rigidez
em algumas categorias de busca, pois o importante é a elasticidade que o
sentido difuso proporciona, a busca, a navegação heurística na procura
de aclaramentos.
Tia
Marcelina havia retornado, o Quebra havia retornado não para os
intelectuais, mas para dentro do povo da macumba. E aí que aparece o que
estava na lembrança dos povos, lembrança criada e lembrança vivida,
quando fizemos as anotações nós finais da década de sessenta. Zumba me
disse ter um retrato da Tia Marcelina. Não discuti; comprei o quadro e
ficou sendo Tia Marcelina, uma negra que poderia ter todos os rostos de
todos os negros da época do Quebra. Conversei muito sobre o Quebra;
Quebra é uma palavra excepcional. A memória do povo da macumba consagrou
o termo, guardou, estava andando pelas ruas de Alagoas naquela beirada
dos sessenta. Evocava a perseguição, relembrava o Xangô resado baixo, ou
ingomes recolhidos; a expressão resado baixo ouvi do Luiz Marinho, numa
conversa após termos jogado os búzios. Rezar baixo, era uma atitude de
subversão; a seita subvertia o sistema; nada de passividade. Não sei de
onde e de quem ele tirou a expressão pois ela é conhecida. Talvez a
primeira e necessária pergunta seja o que significa Quebra, sendo
conveniente entender que não é uma expressão da seita; a palavra Quebra
não foi criada dentro do povo da macumba; significa pancadaria, desordem
por ajuntamentos implicando em destruição, como aconteceu com o quebra
dos currais de peixe. No século XIX seria facilmente reconhecível no que
a ordem legal chamava de azuada. Uma azuada mais drástica, com danos.
Não
se fala em a quebra; a substantivação do verbo é masculina, é por isso
que há o artigo determinativo associado e ajuda, no caso, a
particularizar o Xangô; ainda hoje é utilizada no composto quebra-quebra
e, por sua natureza, praticamente exime o Estado, que não pode ser
baderneiro, mas era. O controle do mando se fazia baderneiro.
Houve
baderna e os despojos são carregados em praça pública e, até mesmo,
expostos para a visitação. A rua se torna a demonstração do triunfo que
assume o espaço público, como foi pública a baderna encaminhada por
milícia privada. O processo sai do senhorial, das frações e atinge o
público subdividido.
Ora,
aí é que começa a necessidade de desestruturar as informações: bárbaros
são os dois conjuntos senhoriais. A barbárie é senhorial. Se nos formos
tomar os estratos de baixa renda da população, estaremos diante de um
universo em contradição, enquanto da oposição, havia uma unidade
senhorial afirmada como categoria dominante, organicamente situada.
Jamais poderia dar-se uma contradição intra-senhorial, dava-se conflito,
oposição. O oposto do senhorial era o negro.
Possivelmente,
o quebra- quebra pode ser considerado como o fato mais importante da
história negra na Primeira República, equivalendo ao que simbolicamente
aponta o Palmar colonial e o cabano imperial papamelizado. Um dos sinais
da negritude assumiu evidência pública e foi mantido por um grupo
sacrificado socialmente, dando-se morte como aconteceu com a Tia
Marcelina. Este sinal efetivo de negritude foi a religião de guarda dos
orixás.
Uma
de nossas velhas anotações comenta o Quebra. Relembra a leitura das
matérias no Jornal de Alagoas. A ele correspondeu o festim, a bacanal de
uma vitória e se deu espetáculo público pelas ruas de Maceió. Nessa
mesma velha anotação, letra demorada, eu escrevia que a melhor maneira
de entender o Quebra era pensar na violência da arrebentação de elos de
uma corrente e ao mesmo tempo na afirmação de uma nova trama de malha.
Gente partiu, gente foi presa. Abelardo Duarte fala no assunto, numa
espécie de introdução à coleção Perseverança. Basicamente, o texto nada
tem com o negro, mas com a guarda do que era do negro.
Peças
foram expostas onde hoje é Arquivo Público de Alagoas e depois
incorporadas ao Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
Por causas delas, escrevi a carta de amor para Tia Marcelina, uma
espécie de vingança lírica e em homenagem a um dos símbolos do Quebra,
espécie de mártire que o imaginário sustentou, morta, segundo a tradição
do povo da macumba, pela polícia dentro do Peji, no que forçosamente o
povo da macumba considerava o aparelho de mando como um
inimigo.
Ao
dizer que os maltistas eram Lebas, o preconceito estava acentuado. Para
identificar o imoral, estava sendo usado o que era bárbaro aos olhos
brancos. O que se argumentava como renovador trazia dentro de si a mesma
ordem preconceituosa, os mesmos fatores perversos na construção da
sociedade, imperantes desde o escravismo. Jamais o negro estaria na
ordem da renovação e daí o Quebra, solenidade marcada de punição ao que
se considerava Bárbaro.
Nesse
clima, segmentos da população pobre vão buscar o embranquecimento ou
arranjar- -se no senhorial. Não é a classe média da Soberania nem seus
ilustres associados rurais que vão às ruas. Utilizam-se do
embranquecimento, da atualização perante os pretensos novos termos do
poder. E gente pobre da Levada, da Ponta Grossa, agrupada pela Liga dos
Republicanos Combatentes. E essa organização, ainda presente pela década
de trinta, que dará suporte à perseguição aos terreiros. Os pobres da
macumba serão alcançados pela violência dos que se faziam
ideologicamente brancos e de Soberania. Há um grande jogo entre cooptar e
resistir.
Essa perseguição jamais terminará; o estado estará
vigilante contra o Xangô e ainda era notada nos anos sessenta, tanto
que, em parte, a Federação dos Cultos Afro-brasileiros surgiu para dar
um cunho mais aceitável às diversas casas. Pelos tempos do Novo Estado,
será intensificada, especialmente após o que ficou conhecido no jargão
oficial como Intentona Comunista. Existe relato de uma das batidas
policiais, em livro de jornalista do Rio de Janeiro que andou por
Maceió. A Federação surge pela época do Muniz, como necessidade política de diálogo e negociação.
Esse
depoimento não é um lugar para detalhar a história dessas perseguições.
O objetivo, nesse momento, é apontar, com base na pequena nota
encontrada em nossa pasta sobre o Quebra que jamais houve liberdade, que
a ordem pública jamais havia aceitado o culto e que ele vivia na
exigüidade do privado das casas pobres, chegando a ser obrigado a
encontrar um esconderijo impossível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário