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terça-feira, 3 de junho de 2014

Rio São Francisco: os amores do poeta


Dois dedos de prosa sobre xarás: o rio e o Francisco

Luiz Sávio de Almeida 






Francisco  Passos é um professor doutor, alergologista e psicanalista, além de Diretor da Faculdade de Medicina da UFAL.  Nasceu à beira do rio de São Francisco,  em Santo Antônio da Glória na Bahia, uma espécie atual de reino submarino, mergulhada que está nas águas da barragem de Itaparica.  Raras as pessoas tão marcadas pelo aconchego das águas do rio, quem sabe metade homem e metade peixe, gente que cresceu sabendo das histórias das piranhas e vivendo Lampião que andava para cima e para baixo naqueles sertões.
Acontece que Francisco sabe dos senões e dos aviões. Vez em quando, em companhia de uma galera ultra-amiga – inclusive este que vos fala - , Francisco (o professor) encontra-se com Francisco (o rio) e um passeia pelo outro. Dessas idas  e vindas surgem poesias, algumas publicados em seu livro Sobras de silêncios.
Campus agradece a possibilidade de publicar seus poemas, suas fotos  e é uma honra tê-lo conosco.
Luiz Sávio de Almeida
Poço do Pai Pedro, abril de 2014

Francisco Passos é doutor em medicina e diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas, autor de inúmeros trabalhos científicos e poeta por opção de vida e de olhar o mundo. Sobretudo, ele é um homem do Rio de São Francisco. 

 

 

Um rio Francisco
Francisco Passos

Uma viagem pelo rio São Francisco é uma viagem no tempo. O barco é a máquina do tempo, a memória o relógio, e os olhos a filmadora. A viagem lenta induz a um estado de quase beatitude, quase hipnótica. Um leve torpor me domina enquanto contemplo entre admirado e assombrado, em seu estado atual, o rio descarnado, o titã dominado. A ânsia de rever o rio e o caleidoscópio de belezas antecipadas vai sendo substituída por um sentimento de desamparo e de raiva pela humanidade, pelo horror do progresso vazio. O rio se mostra no presente, desnutrido, desidratado, anêmico e banguelo: raso, estreito, sem peixes, sem pescadores, com as margens decadentes se desfazendo, e sem árvores para lhes dar sustentação. Ainda assim, o ronco monótono do motor soa como um mantra convidando à contemplação meditativa do que lhe resta de beleza: a aquarela esmaecida das águas, o guache delicado dos arruados sobrevivendo teimosos em suas margens corroídas, o grafite seco dos morros e serras pelados, o óleo cintilante do voo das garças, o nanquim chinês do céu noturno espelhado no breu de sua mentirosa armadilha de abismos rasos, a fotografia amarelada ao meio dia dos vestígios do passado da opulência de uma energia que parecia incontrolável. O rio há muito deixou de ser Opara dos índios locais, arquétipo do paraíso tropical brasileiro, mas ainda é lindo como uma top model esquelética, que nos mantém em estado de alerta permanente, com medo que caia na passarela, com receio que ele mesmo não desfile até o final para se exibir e abraçar o mar. Talvez o rio tenha mesmo se convertido no retirante magro que luta para sobreviver em seu caminho para a capital assentada em equilíbrio precário com o mar. O retirante é atraído pela capital que o engole,  e rejeita como dejeto em seus próprios rios menores transformados em esgotos.  O mar também oferece resistência ao rio que enfraquecido se vê invadido e sem sua identidade doce e de pujança piscosa.

O rio é caleidoscópico, induz vertigem com suas cores, formas, sons e odores que se multiplicam em todas as direções e se duplicam em suas águas. O passado retorna com seus fantasmas. Em algum pedaço da margem a vegetação exuberante intocada pela força devastadora humana fascina. É o tempo da natureza atravessando o tempo humano. O olhar vagueia nas paisagens da memória, por belezas antigas pintadas por uma natureza de cores mais vivas, com mais verde nas margens e nas águas, com espumas flutuantes geradas no torvelinho da força e da pressa do rio em chegar até o mar. Velhos casarões ainda podem ser vistos, expostos ao sol, esmaecendo-se como velhas fotografias, vestígios de um passado opulento.
 A visão de crianças banhando-se no rio subitamente nos devolve ao presente para pensar no futuro. O barco é estacionado em um povoado na hora do almoço. A máquina do tempo para no presente. O roteiro do futuro do rio ainda está sendo escrito e filmado com a frágil e cívica resistência nordestina à transposição de suas águas ao mesmo tempo em que com a escrita subterrânea dos enganos políticos regionais, com os projetos de revitalização de suas margens, com o repovoamento de suas águas com espécies nativas, mas também com muito lixo e assoreamento, desvio de verbas e águas, e com a mais brutal violência à sua principal riqueza, a identidade do povo ribeirinho que assiste perplexo, a inundação de cidades e povoados, de tradições seculares, e de sua história afetiva.


À MARGEM DO RIO A VIDA SE MOSTRA PELO AVESSO

O TEMPO ESCOA AO CONTRÁRIO DO RELÓGIO

CASAS, PESSOAS, NATUREZA,

MOSTRAM SEU DUPLO COMO RAÍZES LÍQUIDAS

A VIDA À MARGEM DO RIO É REFLEXO E MIRAGEM

VIAGEM NÃO É PARA ONDE SE VAI
É SEMPRE UM MERGULHO NA ALMA
E UM DESAPEGO DA RAZÃO
O RIO PARA ONDE FUI
NÃO É O MESMO QUE TRAGO NA BAGAGEM
  O RIO NÃO É O QUE QUEREMOS QUE ELE SEJA
IMENSO ESPELHO DE NOSSAS INTENÇÕES
O RIO APENAS REFLETE

À NOITE QUANDO OS HOMENS ADORMECEM
 O RIO RECOLHE SUAS TRANSPARÊNCIAS
E VESTE SEU LONGO MANTO NEGRO
A LUA ENTAO DESCE CONFIANTE COM SUAS ESTRELAS MENINAS
PARA NELE SE BANHAR


RIO FEMININO
DE TEUS AMANTES INSATISFEITOS
NÃO TENHO CIÚME DO PESCADOR EGOÍSTA
TENHO CIÚMES DO MAR QUE À NOITE
SUSPENDE TUA SAIA BORDADA DE LUA E ESTRELAS
E PENETRA POR BAIXO
DE TUAS ANÁGUAS RENDADAS DE ESPUMAS


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