Dois dedos de prosa sobre xarás: o rio e o Francisco
Luiz Sávio de Almeida
Francisco Passos é um professor doutor, alergologista e
psicanalista, além de Diretor da Faculdade de Medicina da UFAL. Nasceu à beira do rio de São Francisco, em Santo Antônio da Glória na Bahia, uma
espécie atual de reino submarino, mergulhada que está nas águas da barragem de
Itaparica. Raras as pessoas tão marcadas
pelo aconchego das águas do rio, quem sabe metade homem e metade peixe, gente
que cresceu sabendo das histórias das piranhas e vivendo Lampião que andava
para cima e para baixo naqueles sertões.
Acontece que Francisco sabe dos
senões e dos aviões. Vez em quando, em companhia de uma galera ultra-amiga –
inclusive este que vos fala - , Francisco (o professor) encontra-se com
Francisco (o rio) e um passeia pelo outro. Dessas idas e vindas surgem poesias, algumas publicados
em seu livro Sobras de silêncios.
Campus agradece a possibilidade
de publicar seus poemas, suas fotos e é
uma honra tê-lo conosco.
Luiz Sávio de Almeida
Francisco Passos é doutor em medicina e diretor da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas, autor de inúmeros
trabalhos científicos e poeta por opção de vida e de olhar o mundo. Sobretudo,
ele é um homem do Rio de São Francisco.
Um rio Francisco
Francisco Passos
Uma viagem pelo rio São Francisco é uma viagem no tempo.
O barco é a máquina do tempo, a memória o relógio, e os olhos a filmadora. A
viagem lenta induz a um estado de quase beatitude, quase hipnótica. Um leve
torpor me domina enquanto contemplo entre admirado e assombrado, em seu estado
atual, o rio descarnado, o titã dominado. A ânsia de rever o rio e o
caleidoscópio de belezas antecipadas vai sendo substituída por um sentimento de
desamparo e de raiva pela humanidade, pelo horror do progresso vazio. O rio se
mostra no presente, desnutrido, desidratado, anêmico e banguelo: raso,
estreito, sem peixes, sem pescadores, com as margens decadentes se desfazendo,
e sem árvores para lhes dar sustentação. Ainda assim, o ronco monótono do motor
soa como um mantra convidando à contemplação meditativa do que lhe resta de
beleza: a aquarela esmaecida das águas, o guache delicado dos arruados
sobrevivendo teimosos em suas margens corroídas, o grafite seco dos morros e
serras pelados, o óleo cintilante do voo das garças, o nanquim chinês do céu
noturno espelhado no breu de sua mentirosa armadilha de abismos rasos, a
fotografia amarelada ao meio dia dos vestígios do passado da opulência de uma
energia que parecia incontrolável. O rio há muito deixou de ser Opara dos
índios locais, arquétipo do paraíso tropical brasileiro, mas ainda é lindo como
uma top model esquelética, que nos mantém em estado de alerta permanente, com
medo que caia na passarela, com receio que ele mesmo não desfile até o final
para se exibir e abraçar o mar. Talvez o rio tenha mesmo se convertido no
retirante magro que luta para sobreviver em seu caminho para a capital
assentada em equilíbrio precário com o mar. O retirante é atraído pela capital
que o engole, e rejeita como dejeto em
seus próprios rios menores transformados em esgotos. O mar também oferece resistência ao rio que
enfraquecido se vê invadido e sem sua identidade doce e de pujança piscosa.
O rio é caleidoscópico, induz vertigem com suas cores,
formas, sons e odores que se multiplicam em todas as direções e se duplicam em
suas águas. O passado retorna com seus fantasmas. Em algum pedaço da margem a
vegetação exuberante intocada pela força devastadora humana fascina. É o tempo
da natureza atravessando o tempo humano. O olhar vagueia nas paisagens da
memória, por belezas antigas pintadas por uma natureza de cores mais vivas, com
mais verde nas margens e nas águas, com espumas flutuantes geradas no
torvelinho da força e da pressa do rio em chegar até o mar. Velhos casarões
ainda podem ser vistos, expostos ao sol, esmaecendo-se como velhas fotografias,
vestígios de um passado opulento.
A visão de
crianças banhando-se no rio subitamente nos devolve ao presente para pensar no
futuro. O barco é estacionado em um povoado na hora do almoço. A máquina do
tempo para no presente. O roteiro do futuro do rio ainda está sendo escrito e
filmado com a frágil e cívica resistência nordestina à transposição de suas
águas ao mesmo tempo em que com a escrita subterrânea dos enganos políticos
regionais, com os projetos de revitalização de suas margens, com o repovoamento
de suas águas com espécies nativas, mas também com muito lixo e assoreamento,
desvio de verbas e águas, e com a mais brutal violência à sua principal
riqueza, a identidade do povo ribeirinho que assiste perplexo, a inundação de
cidades e povoados, de tradições seculares, e de sua história afetiva.
À MARGEM DO RIO A VIDA SE
MOSTRA PELO AVESSO
O TEMPO ESCOA AO CONTRÁRIO DO
RELÓGIO
CASAS, PESSOAS, NATUREZA,
MOSTRAM SEU DUPLO COMO RAÍZES
LÍQUIDAS
A VIDA À MARGEM DO RIO É REFLEXO
E MIRAGEM
VIAGEM NÃO É PARA ONDE SE VAI
É SEMPRE UM MERGULHO
NA ALMA
E UM DESAPEGO DA
RAZÃO
O RIO PARA ONDE FUI
NÃO É O MESMO QUE
TRAGO NA BAGAGEM
O RIO NÃO É O QUE QUEREMOS QUE ELE SEJA
IMENSO ESPELHO DE
NOSSAS INTENÇÕES
O RIO APENAS REFLETE
À NOITE QUANDO OS
HOMENS ADORMECEM
O RIO RECOLHE SUAS TRANSPARÊNCIAS
E VESTE SEU LONGO MANTO NEGRO
A LUA ENTAO DESCE CONFIANTE COM
SUAS ESTRELAS MENINAS
PARA NELE SE BANHAR
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