A presença da leitura na capital que quer,
mas não consegue ler
Elayne Pontual
Elayne
Pontual é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela
Universidade Federal de Alagoas. Idealizou o projeto Vidas Anônimas (www.vidasanonimas.com.br),
que você acompanha todos os domingos em O Dia.
Dois dedos de prosa
Maceió
tem uma extensa rua de
livrarias e, aqui, o povo lê mais do que pensa. Uma grande atividade livreira,
terminou por deixar marca e especializar uma boa parte da antiga Rua das Verduras, especialmente no lado
oposto ao chamado Paredão da Assembleia e onde o fluxo de veículos – que
incorpora parte do que provém pela Rua do Imperador – impede a utilização em pleno centro da
cidade, para localização de estabelecimentos
de porte alto. Este e um conjunto formado por outros fatores
levou a que fosse configurado um corredor especializado nos chamados
sebos. Aliás, avança atualmente para o lado direito da
Ladeira da Catedral, onde, também, começa a desenhar-se com ênfase, uma área de
venda de material musical e de
eletrônica.
Campus
convidou uma jovem e
talentosa jornalista para escrever este texto. Trata-se de Elayne Pontual que
se preocupa com o que chama de Vidas Anônimas, um projeto que se desenvolve
acolhido por O DIA. Vamos ler Elayne, a
que estamos pedindo um novo texto, deixando que sua sensibilidade nos envolva
ao falar desta miríade de pequenos e quase-anônimos livreiros que fazem com que
Maceió leia.
Luiz Sávio de Almeida
Vazio, julho de 2014
A presença da leitura na capital que quer, mas não consegue ler
Elayne Pontual
Somente quem passa pela
rua Dr.
Pontes de Miranda, conhecida também como Rua das Verduras, e
presta atenção à quantidade de sebos existentes naquele lugar, consegue
perceber o quanto é denso o comércio de livros em Maceió. Transpondo a órbita
das grandes e raras livrarias da cidade, a venda de livros na capital alagoana
parece contrariar a crença de que nós maceioenses não lemos. Mas o que dizer do
imenso acervo de obras que preenche as barracas e lojinhas do paredão da Pontes de
Miranda? Será que todo aquele estoque fica mofando em prateleiras empoeiradas?
Para entender como funciona a venda e a compra de
livros usados em Maceió, percorremos a Rua das Verduras e entrevistamos alguns
sebistas. Ao conversarmos com aqueles que vedem, pudemos entender e conhecer
melhor aqueles que compram: quem compra, o que compra e por que compra.
Entre romances clássicos, livros de medicina,
literatura brasileira e paradidáticos, batemos um papo com Benedito, José
Augusto, Romildo, Ronaldo e Edvaldo, sebistas da Rua das Verduras.
Parte
da história
No final da década de
70, Benedito Ferreira Lima, conhecido como Biu, saiu às ruas do centro de
Maceió para recolher material reciclável. Com estômago e bolso vazios, o
papelão não pesava o suficiente para sustentar suas necessidades. Precisando muito
de dinheiro, o carroceiro resolveu acrescentar livros e revistas à sua carroça.
Certo dia, ao se sentir
muito cansado, Biu parou na Praça Dom Pedro II para descansar e organizar seus
pertences. Algumas pessoas perguntaram se os livros estavam à venda e ele, despretensiosamente,
respondeu que sim. “E quanto custa esse aqui?”, apontou uma moça. Essa pergunta
levou Benedito a pensar que poderia dar preços aos livros usados e, ao invés de
vender por peso, passou a negociar as unidades. Foi assim que surgiu, segundo
alguns sebistas do local, um dos primeiros sebos do conhecido Paredão da
Assembleia Legislativa.
Esta é uma das versões
sobre o início dos alfarrábios na Rua da Verdura. Ela conta que Benedito, ao
ver que o negócio estava dando certo, decidiu expor sua mercadoria no paredão
da rua Dr.
Pontes de Miranda, no centro da cidade, onde, até hoje, se encontram a maioria
dos sebos de Maceió. Os primeiros fregueses surgiram e vários funcionários
e membros da Assembleia Legislativa passaram a procurar os livros e comprá-los
de uma forma muito curiosa. De acordo com alguns sebistas do local, como os
funcionários da Assembleia não queriam descer até onde Benedito estava, os clientes
jogavam uma corda e o negociante amarrava os livros para que eles os puxassem
para cima, tudo através das janelas do prédio da Assembleia.
Benedito casou, teve
filhos e deixou seu estabelecimento aos cuidados de um deles. José Augusto da
Silva Lima conta a história do pai com emoção, e em cada palavra o orgulho se
destaca como o sentimento mais forte. Recorda-se, agitado, o tempo em que
Benedito ainda era vivo e que o ensinava a administrar o negócio.
“Conheci muita gente
importante por causa do meu pai”, lembra-se de Dona Elsa, mãe do autor alagoano
Abelardo Duarte. “Ela me ofereceu várias obras escritas pelo filho quando eu
tinha 19 anos”. José Augusto conta também que coleciona Gibis do Tex e que tem
a edição nº 1 da Turma da Mônica.
O
herdeiro de um dos primeiros sebos de Maceió sempre teve pretensões de levar o
mercado de alfarrábios para o interior do Estado. No entanto, a dificuldade
para pagar o aluguel do estabelecimento não permitiu sequer que ele continuasse
com seu negócio no Centro de Maceió. E
foi assim que um dos sebos mais antigos da cidade fechou suas portas.
Hoje José Augusto trabalha como
manobrista no estacionamento vip do Parque Shopping Maceió, mas pretende voltar
a vender livros usados o quanto antes. “Você pode não acreditar, mas muitos
colegas de trabalho, funcionários do shopping, me procuram para comprar meus
livros”.
Augusto já pensou em vender todo o
seu acervo, que mantém protegido em um espaço de sua casa, mas não consegue se
desfazer porque gosta de trabalhar como sebista e, além disso, pretende manter
o negócio que foi herança de seu pai. “Recentemente fui ao centro e encontrei
um antigo colecionador, conhecido meu, e assim que ele me viu já foi entregando
uma sacola cheia de livros. Tem muita gente boa que nos ajuda e esse é um dos
motivos que me faz querer voltar”.
Herói dos livros
José Augusto fechou
suas portas – não por muito tempo, ele garante –, mas existem outros sebistas
que permanecem no paredão da Assembleia vendendo seus livros usados. Um exemplo
é Romildo Silva, proprietário de um dos maiores sebos da cidade, o Herói dos
Livros, que, de acordo com o comerciante, hoje conta com um acervo de quase 39
mil volumes.
Romildo entrou para
mercado de alfarrábios no final de 1984: “Quando estamos sem dinheiro, pensamos
logo em vender coisas que não usamos mais”, lembrou. Antes de abrir um sebo,
queria ser cozinheiro, mas desistiu e resolveu investir na venda de livros usados
montando uma pequena barraca no paredão.
O fato mais marcante
que Romildo viveu durante esses anos como sebista, de acordo com ele, foi em
1992, quando um senhor parou com um caminhão cheio de livros na frente de sua
barraca vazia. Apressado, o homem perguntou se havia alguém ali que estivesse
interessado em comprar livros. Romildo alegou que não tinha dinheiro sequer para
comer e que estava ali porque era o único lugar que tinha para dormir. O senhor
respondeu que qualquer valor oferecido seria bem-vindo. Romildo prometeu que no
dia seguinte iria depositar uma boa quantia de dinheiro, mas que, para isso,
precisaria dos livros.
No dia seguinte,
Romildo conseguiu vender muito mais do que esperava, depositando, como
prometido, um valor considerável na conta do misterioso homem. Daí por diante,
o sebista confiou em sua veia empreendedora e na sorte grande, passando a
investir cada vez mais no mercado de alfarrábios.
Segundo Romildo, ele
mesmo deu início ao comércio de sebos no interior de Alagoas, montando uma
barraca em Santana do Ipanema, mas desistiu porque nunca teve muita
oportunidade de continuar com o comércio de sebos na cidade, por conta da
distância: “A mercadoria demorava pra chegar. Quando o produto se esgotava aqui
[Maceió], é que começava a vender em Santana”.
Atualmente, Romildo
está com a reforma de seu estabelecimento no centro da capital parada por
questões burocráticas, já que o prédio é alugado. No entanto, o sebista
pretende dar continuidade às obras com a intenção de deixar o local mais
sofisticado e confortável para seus clientes.
Centralização e herança
Muita gente que já
passou pela rua Dr. Pontes de Miranda ou Rua da Verdura já se perguntou o
porquê de boa parte dos sebos da cidade estarem concentrados naquele local.
Para Edvaldo Pereira, do sebo Escritos e discos, tudo começou com as
barraquinhas no paredão. “O pessoal jogava livros em lonas e vendia. Depois a
coisa foi crescendo e alguns vieram para as lojinhas. Eu não tenho certeza, mas
parece que a mais antiga data de 72 ou 73, mas já passou de mão em mão”.
Além de considerar que
os sebos estão concentrados na Rua das Verduras porque muitos foram passados de
pai para filho, Ronaldo Augusto, do Alfarrábio Cultural, acredita também que o agrupamento
na rua do
Paredão da Assembleia “se dá por conta da centralização: quanto
mais centralizado, melhor o comércio. E geralmente as bancas foram passadas de
pai para filho, aí as pessoas dificilmente saem de lá”.
Acervo
e dificuldades
Ronaldo Augusto Tenório
dos Santos começou no mercado de sebos quando tinha 11 anos. Seus livros
ficavam dentro de um caixote coberto por uma lona, no chão do Paredão da
Assembleia. “Meu irmão precisou de ajuda e eu fui dar um apoio. Com o tempo
alugamos um ponto e de lá para cá a gente foi se organizando até conseguirmos
alugar uma lojinha”, conta o proprietário do Alfarrábio Cultural.
Assim como a maioria
dos sebistas entrevistados, Ronaldo garante que sua maior dificuldade é
adquirir um bom acervo, mantido por compra, troca e doações: “Quando não chega
material, sentimos o aperto”. Edvaldo José Pereira, de 52 anos, dono do
alfarrábio Escritos e Discos, também enfrenta este problema: “Temos muito
contratempo para adquirir livros. Quando chega, nem sempre é um material que
podemos aproveitar. Muitas vezes compramos um pacote, só que vem uns 10% a 20%
daquele lote que pode se dizer que é aproveitável”, lamenta.
Para manter o acervo,
os sebistas precisam aguardar por doações e ofertas. No caso da doação, na
maioria das vezes, pouca coisa é aproveitável. “Os temas jurídicos,
contabilidade, informática e medicina quase nunca são utilizáveis. No Direito,
por exemplo, quando se trata de um código ou processo geralmente recebemos
conteúdo defasado porque sempre existe uma alteração e quando as pessoas se
desfazem desses livros normalmente já estão desatualizados. O romance demora
pra sair, mas uma hora sai. A área de humanas, nível superior, tem uma busca e
é um tipo de livro que quase nunca se torna ultrapassado, como história,
filosofia, antropologia, sociologia ou política”, explica.
Apesar das
dificuldades, de acordo com Edvaldo José Pereira, dono do alfarrábio Escritos e
Discos, os sebistas do paredão não têm nenhuma associação ou sindicado, mas ele
sente falta de uma organização e união da categoria. “Para isso é preciso que
todo mundo queira. Sentimos falta pra fazer reforma numa barraca, empréstimo, capital
de giro, enfim, viabilizar esse tipo de coisa”. De acordo com o comerciante, os
proprietários dos sebos no centro da cidade também não têm nenhum incentivo do
governo. “O poder público poderia nos ajudar na compra de livros por um preço
acessível, por exemplo. Temos muita dificuldade para adquirir mercadoria”.
Com cerca de 3 mil
livros em seu acervo, amante da poesia matuta de Patativa do Assaré, Edvaldo Pereira
se mudou há dois meses para um corredor na rua do paredão e em breve vai
colocar uma plaquinha para identificar o local. “O negócio está um pouco
desgastado, porque as pessoas hoje têm a opção do mercado virtual, os sebos
virtuais e muita gente compra pela internet. Mas temos um movimento que eu
diria ser razoável”.
Para Edvaldo, a Livraria
Leitura, a maior do Estado, aberta recentemente com o lançamento do Shopping
Parque Maceió, não interferiu nas vendas dos sebos. “Apesar de ser uma
alternativa para os alagoanos, não alterou a venda aqui. Aliás, nós alagoanos,
estávamos precisando de uma livraria nesse porte. Talvez ela não tenha atendido
às expectativas da população, mas de qualquer forma já é uma opção no mercado”,
avalia.
Raridades
Mesmo com as
possibilidades oferecidas pela internet, os sebos físicos continuam vendendo
seus livros usados para uma clientela fiel. E, ainda que abram grandes
livrarias na cidade, há quem rejeite o cheirinho de novo e ame as páginas
empoeiradas dos antigos ou o mistério das edições raras.
Amanda
Duarte, antiga frequentadora de sebos, diz gostar dos livros usados porque são
mais baratos, se comparados aos best
sallers encontrados nas poucas livrarias de Maceió: “Mas, principalmente,
porque as raridades me seduzem. Encontrar livros que foram deixados para trás,
são pouco procurados ou lembrados pela maioria das pessoas é um prazer para
mim. Os apelos mercadológicos encontrados nos mais vendidos não me interessam”,
afirma.
Entre os livros e
discos presentes nas prateleiras dos sebos da Rua das Verduras, existem as
raridades. Ronaldo Augusto, do Alfarrábio Cultural, garante que o livro mais
caro vendido por ele foi o Terra das Alagoas. Segundo o sebista, o livro foi
patrocinado pelo deputado federal e empresário João Lyra, que distribuiu suas
cópias entre amigos. “Ele foi vendido por 1.500, já que se trata de um livro
muito bom e que não foi para as livrarias, tornando-se raro”, conta.
Edvaldo Pereira, do
Escritos e Discos, acredita que não é a data de impressão de um livro que
define se ele é raro. “Tem que ser antigo e de cunho científico. No caso do
romance tem que ser uma edição antiga muito procurada, questionada ou que tenha
um fato que voltou à tona”. Ele adverte: É preciso ter cuidado, tudo deve ser
analisado até se chegar à conclusão de que é uma obra rara. “Há quem acredite
que porque o livro é antigo é também raro, mas não é bem assim. Existem livros
com edições antigas, por exemplo, que não foram reeditados. Isso é um fator que
encarece o preço, porque o pessoal continua a procurar, mas não existe mais no
mercado, já está esgotado. ”
O contato com um objeto
que já pertenceu a alguém, as marcas do tempo e o mistério por trás dos objetos
antigos e usados são grandes atrativos para seus leitores e
colecionadores. “Os colecionadores
costumam oferecer um valor muito alto por algumas relíquias. Eles querem, na
verdade, é possuir algo que ninguém mais tenha”, conclui Romildo, dono do sebo
Herói dos Livros.
Sim, nós lemos
Em
redes sociais como Facebook e Twitter, ou em mesas de bar e até mesmo no sofá
de casa, pelo menos uma vez, você já deve ter ouvido alguém reclamar que Maceió
poderia ter mais livrarias. Quantas vezes não somos forçados a comprar livros
pela internet porque não conseguimos encontrar o título desejado em nossas
livrarias e bibliotecas? “Se a demanda parece maior que a oferta, porque ainda
temos que sair como os não-leitores do Brasil, como se a culpa fosse nossa? ”,
pergunta Nathan Souza, estudante universitário.
Cursando
Sistema da Informação, Nathan costuma frequentar os sebos não para comprar
livros da sua área de estudo, mas para encontrar aventura e fantasia como nos
livros do norte-americano George R. R. Martin, autor das Crônicas de Gelo e
Fogo. “Eu gosto desses gêneros porque me prendem da primeira à última página. É
uma narrativa que não me deixa entediado. Além disso, são livros que me levam
para lugares diferentes, que não existem. É como se me teletransportasse”,
explica entusiasmado.
Aos
22 anos, o estudante admite que adquiriu o hábito de ler um pouco tarde, com 14
anos, mas garante que desde então não parou mais. “A gente também pode se
viciar em coisa boa”, brinca. Nathan lamenta por ter sempre que recorrer aos
sites de grandes livrarias para adquirir lançamentos ou então pegar livros
emprestados com alguns amigos que compartilham do mesmo “gosto” para leitura.
“E quando pergunto onde meu amigo comprou, ele me diz que foi pela internet.
Fora que, convenhamos, nossas bibliotecas passam longe de satisfazer nossas
‘necessidades literárias’. Daí fica complicado”.
Até
aqui, ficou claro que para nossos entrevistados, entre sebistas, colecionadores
e estudantes, ler não é tanto um problema, mas adquirir ou encontrar um acervo
que proporcione a leitura. Com isso, podemos chegar à conclusão de que queremos
ler, sim, mas infelizmente faltam livros em Maceió.
Evidentemente,
os sebos vendem material que tendem a não ser corrente e nisto bem que poderiam
ser considerados como espécie de sítios arqueológicos de textos. Maceió então,
em matéria de livros, viveria a contradição de ter um copioso estoque de
passado e uma radical ausência de presente, pela falta de livrarias de peso e
isto, em um universo alagoano de mais ou menos 80.000 matrículas
universitárias.
Talvez
a sensação de que a qualquer momento é possível encontrar algo extraordinário
esquecido numa prateleira empoeirada seja um dos maiores atrativos dos sebos,
mas é certo que muitos clientes chegam já sabendo o que querem. As pessoas não
buscam nesses lugares apenas preços baixos, elas vão aos sebos também em busca
daquilo que não encontram em livrarias, bibliotecas e até mesmo na internet.
Por isso podemos considerar que os sebos têm uma função social, de utilidade
pública. Não são apenas um comércio, mas um conjunto de bens que serão passados
de geração a geração, uma herança cultural.
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