Este trabalho foi publicado em Campus, suplemento do jornal O Dia, que circula em Maceió, número 122 de 28 de junho a 4 de julho de 2015
Arts, Ballet, Memories
Eliana Cavalcanti
Bailarina, professora de ballet, coreógrafa e Mestra em Literatura (UFAL).
Estudou balé em Recife- 1958 a 1973. Fundadora do Ballet Eliana
Cavalcanti (1973), 1ª escola de balé de Alagoas. Diretora do Ballet Íris de
Alagoas (1981- 2002). Diretora da Escola de Dança do Centro de Belas Artes de
Maceió. (1987). Diretora da Fundação
Teatro Deodoro (1988).
Sócia efetiva da Academia
Alagoana de Letras e Academia Alagoana de Cultura. Sócia Honorária da Academia Palmeirense de
Letras, Ciências e Artes. Diversos prêmios e distinções.
Dois dedos de prosa
Eliana Cavalcanti vem
marcando a vida cultural de Alagoas, mormente no que se refere ao ballet,
atividade que é difícil pensar, em Maceió, sem os seus passos, suas marcas, seu devotamento. Além do mais, como se pode ver em seu texto,
é excelente memorialista, o que já havia ensaiado em livro.
Todas as qualidades
estão juntas neste trabalho, que é um depoimento sobre os anos setenta,
escrito especialmente para Campus. O jornal agradece e compartilha o texto com
os amigos.
Um abraço grande Eliana
Luiz Sávio de Almeida
Primeira Bailarina do Grupo de Ballet do Recife |
O meu caminhar nos anos setenta
Eliane Cavalcanti
Não devo dizer que me
arrependi de ter feito a escolha de morar em Maceió, pois o fato é que o
cenário artístico da cidade, no início da década de 70, era promissor. Muitos
planos foram elaborados em função de uma vontade férrea e uma crença de que as coisas
dariam certo. Eu tinha três nítidos sonhos: constituir uma família, ter uma
escola de balé muito séria e dirigir uma companhia de dança.
Os dois primeiros foram
realizados, mas, o terceiro... Hoje, tenho plena consciência de que realizei um
bom trabalho, venho colhendo muitos frutos, mas, com relação ao meu terceiro sonho,
foi uma decepção atrás da outra. Quantos projetos debaixo do braço, correndo
atrás de empresas, instituições, pessoas físicas etc.! O Ballet Íris de Alagoas
(grupo formado pelos melhores alunos do Ballet Eliana Cavalcanti) foi criado em
1981 e extinto em 2002. O grupo, ou companhia, como é mais comum se chamar nos
dias de hoje, produziu trabalhos que honraram a nossa cultura, dançando
inúmeras vezes, não só dentro de Alagoas, mas, principalmente, fora dos nossos limites,
quando desempenhou um papel de destaque no cenário nacional.
Nossa meta era transformá-lo em uma companhia profissional de grande projeção.
Passados seis anos de sua extinção (por desânimo pessoal e forças esgarçadas),
eis que surge uma luz no fundo do túnel, com a possível criação de um corpo de
baile do Teatro Deodoro. O Complexo Cultural Teatro Deodoro, idealizado pelo
presidente da DITEAL (Diretoria dos Teatros de Alagoas), Juarez Gomes de
Barros, inaugurado em 2014, foi planejado para abrigar, entre outras coisas,
uma orquestra e um corpo de baile. Passei seis anos (de 2008 a 2014) sonhando e
prestando consultoria à DITEAL sem nada cobrar, alimentada pela possibilidade
de um desenvolvimento e maior visibilidade da dança em nosso estado.
O Complexo foi inaugurado no
apagar das luzes do governo de Teotônio Vilela Filho. Uns meses antes, durante
uma solenidade na qual recebi a Comenda Nise da Silveira (penso que foi prêmio
de consolação), questionei ao governador, com veemência, sobre a demora em
inaugurar o Complexo que, àquela altura, fim de mandato, se arrastava com
lerdeza como o bicho preguiça. Disse eu: “O senhor vai colocar a placa com seu
nome no dia da inauguração, mas o espaço estará sem alma, pois bailarinos e
músicos não serão contratados a tempo”. As fotos daquele dia me retratam como
uma bruxa atacando a um cordeirinho indefeso.
Comentários de pessoas de dentro do novo governo me dizem que não há
verba para tal investimento cultural e que o corpo de baile e orquestra não
acontecerão. Essa minha luta de sempre me faz hoje, vésperas de completar 65
anos, uma pessoa desalentada com relação à cultura da minha terra. Falta
dinheiro? Sim, é verdade. Mas, efetivamente, falta vontade política, respeito
aos nossos artistas. E essa história, como dizemos em terras olindenses, “é
mais velha que a Sé de Olinda”.
Exageros à parte, realmente todo o trabalho que aqui desenvolvi estava traçado
para a velha “Marim dos Caetés”. Mas o destino me pregou uma peça ao me fazer
namorar, noivar e casar com um alagoano. Eu não ignorava que as pessoas aqui em
Maceió, em termos de balé, pouco sabiam. Três exemplos podem ser aqui contados:
1º− Ainda solteira e adolescente, vim com a minha escola de balé dançar em Maceió,
e o pessoal técnico do Teatro Deodoro, inocentemente, encerou o palco para nos
receber. Tomamos um susto.
Foi preciso raspar o palco para que pudéssemos dançar. 2º− Também, por
essa época (eu ainda não ensinava balé), recebi um convite para dar aulas, no
terraço de uma casa na Avenida Tomás Espíndola, para uma moça que era
apaixonada por balé. Eu estava de férias, hospedada no Farol, na casa de minha
avó Elisa, e minha tia Jandira me falou de uma sobrinha da atriz e escritora
Anilda Leão, que fazia balé no Conservatório de Música, dirigida pela inesquecível
maestrina Venúsia de Barros Melo, recentemente falecida.
À medida que fui lhe passando os exercícios, seus olhos brilhavam. Ao
final do curso relâmpago, creio que umas três aulas, ela me pediu que, por
favor, viesse morar em Maceió e ensinar balé por aqui. Imagino que eu devia ter
uns 14 anos, pois aos 15 comecei a ensinar no Recife, na escola da minha
professora. 3º− A sociedade alagoana via o balé como lazer, algo de fácil
aprendizado, ou seja, uma arte pouco exigente. No dia do meu primeiro ensaio
geral, aquele que antecede à estreia, com figurinos, cenários etc., as famílias
das alunas compareceram em massa (pais, irmãos, empregadas, avós, papagaio e
periquito).
Fizeram uma festa no Deodoro. Tagarelavam eufóricos, e crianças corriam
entre as poltronas, ou mais em cima, nas frisas, camarotes e torrinha, sem que
os pais se abalassem. Acostumada com a clássica e espartana disciplina do balé,
dei um grito que deve ter abalado as estruturas do teatro. Deu-se um silêncio mortal,
pois todos se calaram. Percebia ali que teria de educar aquelas pessoas
presentes para a importância da arte e o respeito pelos artistas. E que o balé,
no nosso caso específico, era uma arte dificílima e extremamente exigente.
Poucas pessoas tinham essa noção. Exceção, diríamos, para aquelas mais cultas,
por estarem permanentemente viajando e assistindo a grandes espetáculos fora de
Alagoas.
Temos de considerar a pouca idade do balé no país. Lembremos que a
fundação da primeira escola oficial de balé do Brasil, vinculada ao Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, só aconteceu em 1927, quando de lá sairiam, alguns
anos depois, bailarinos formados por aquela escola que se dispersaram pelo Brasil;
entre eles, a minha professora de balé, que passaria a residir e lecionar balé
em Recife, em 1957.
Em agosto de 1973, eu
pertencia ao Grupo de Ballet do Recife, dirigido por Flavia Barros. E foi assim
que, às vésperas do meu casamento, dancei no Nosso Teatro (minha despedida de
solteira como bailarina no Recife), teatro que, mais tarde, viria a se chamar
Valdemar de Oliveira. Eu era 1ª bailarina do grupo e, portanto, assumia os
papéis mais difíceis e importantes. Ensaiava muito, dava aulas aqui em Maceió
desde o ano anterior (Colégio Santíssimo Sacramento), e em Recife (Curso de
Danças Clássicas Flavia Barros), e preparava o casório.
Minha mãe chegou como convidada, pois todos os detalhes tinham de ser
resolvidos por aqui mesmo, como: igreja, bufê, ornamentação etc. Só o meu
vestido de noiva foi desenhado e confeccionado no Recife. Tive seis damas de honra,
e a igreja foi decorada pela floricultura da senhora Ilma Vilela com cravos nas
cores branca e rosa. Por uma decisão nossa (minha e do Carlinhos) casaríamos em
Maceió, pois era aqui que havíamos escolhido para morar e, além do mais, a
maioria da nossa família aqui residia. De Recife veio um ônibus, locado
especialmente para a ocasião, trazendo uma turma incrível: amigos de Olinda e
Recife, padrinhos do casamento e a minha diretora e professora de balé, Flavia
Barros. Aqui estava selado o meu destino.
No enxoval para a lua de mel estavam
incluídos: vestidos “tubinho’, calças “bocas de sino”, cintos largos, batinhas,
blusas “cacharrel’ e sandálias “plataforma”. Escolhemos Garanhuns: Monte Sinai
e Tavares Correia, dois dias em cada um desses hotéis. Meu pai escreveu em seu
diário: “Tive lágrimas nos olhos algum tempo, recordando os tempos de Eli,
dançando. Tudo passa depressa!”.
Transcrevo aqui um trecho do livro 50
anos de plié − memórias de uma
alabucana, de minha autoria e lançado em 2008:
“O Jornal de Serviços (Maceió − março de
1973) publicou uma entrevista feita pela colunista Lilian Rose, ocupando meia
página, com uma foto minha: ‘Eliana veio transmitir a arte da dança’. Uma outra
matéria de página inteira do Jornal de Alagoas, datada de 29 de julho de 1973,
com texto de Cavalcanti Barros, comprova que nós já havíamos saído do Colégio
Santíssimo Sacramento e alugado um espaço maior, situado na rua Senador
Mendonça, nº 211, 1º andar, Centro de Maceió. A reportagem, com quatro fotos,
mostra um número crescente de alunas. Considero, portanto, a criação do Ballet
Eliana Cavalcanti, meados de 1973. Contávamos com o apoio de uma pianista
acompanhando as aulas. A última que ficou conosco mais tempo foi D. Zezé de
Almeida, uma artista que havia tocado durante as apresentações de cinema mudo e
que também tocava à noite nos restaurantes dos melhores hotéis de Maceió. D. Zezé
ficou conosco até quando construímos a nossa sede definitiva e ela alegou estar
muito cansada para ter de subir para o bairro do Farol. O fato de a D. Zezé
tocar nas noites a fazia cochilar ao piano. Enquanto os alunos se esforçavam
num adágio, ela dava um cochilo e retornava numa mazurca, ou eles estavam
saltando com um ritmo 2x4 e ela passava a tocar uma valsa brilhante. A moçada
ria contidamente para que ela não percebesse, pois respeitavam o seu cansaço”.
No início da década de 1970,
tivemos muitos avanços tecnológicos e acontecimentos marcantes, e o Brasil
vivia a fase do “Milagre Econômico”. Uma ilusão, sem dúvida, mas não havia
tanta roubalheira, falcatruas ou esquemas de corrupção. As drogas, causadoras
de grande parte da violência dos nossos dias, já começavam a se instalar, mas
não com o avassalador poder destrutivo de hoje. O setor artístico, a despeito
da uma censura acirrada, oferecia um produto diversificado e enriquecedor. Dos
músicos que faziam sucesso, podemos citar, entre tantos: Gilberto Gil, Roberto
Carlos, Caetano Veloso, Elis Regina, João Gilberto, Gal Costa, Tom Jobim, Rita
Lee, Clara Nunes, Jair Rodrigues, Raul Seixas, Vinicius de Moraes e Chico
Buarque. Este último, o meu preferido (sabia e sei, até hoje, as letras de suas
composições de cor).
Em 1977, eu estava no Rio de Janeiro, quando tive a oportunidade de
assistir à peça Gota d’água, escrita
por ele em parceria com o dramaturgo Paulo Pontes, à época casado com Bibi
Ferreira. Bibi encarnava, magistralmente, a personagem Joana, a Medeia
brasileira. A obra tem uma intertextualidade explícita com a tragédia grega Medeia, escrita por Eurípedes em 431
a.C. e é considerada por Aristóteles “a tragédia das tragédias”. Fiquei
encantada com a peça, mas não percebi a profundidade das entrelinhas do texto.
O que me marcou foi, tão somente, a beleza artística do musical: interpretação,
direção, cenários, iluminação etc. Os dois autores, jovens conectados com os
problemas nacionais, revitalizaram Medeia,
transformando-a na tragédia da história brasileira.
A obra Gota d’água nos convida
a uma discussão que inclui a política habitacional do governo (BNH), o
autoritarismo e conflitos gerados pela disparidade do poder econômico. Daí que,
mais de trinta anos depois, escolhi Gota d’água como objeto de estudo do meu
Mestrado pela UFAL. E só então, a partir da leitura minuciosa da peça e com o
olhar mais experiente, atrelado ao trabalho de pesquisa, pude acrescentar
àquela visão ingênua de outrora um conhecimento bem mais aprofundado sobre o
texto. O resultado foi o livro, lançado em 2011, e intitulado: Gota d’água − o abuso do poder e a eloquência
múltipla da palavra.
Vivíamos já há alguns anos a
Ditadura Militar, o que não influía significativamente no meu modo de vida, a
não ser as notícias, vez por outra, de um conhecido que fora torturado ou
exilado, o que nos causava indignação e revolta, sem dúvida. Mas, para mim,
minha família e amigos, a vida era muito boa. Sempre ouvia os conselhos da minha
mãe: “Cuidado com o que fala, pois as paredes têm ouvidos”.
As nossas famílias muito
grandes e já misturadas (um irmão do Carlinhos é meu tio) me preenchiam, pois
não havia um fim de semana sem uma comemoração. O churrasco na nossa casa era
quase que semanal. Tudo era motivo de festa. Comprava o telefone... festa. A
mesinha do telefone... festa. A despensa vivia lotada. Uma fartura. Quando
casamos já compramos uma casa própria, e sem nenhuma interferência da família.
Os recém-casados podiam se dar a esse luxo, sem ser ricos. Portanto, vivíamos
um sonho: fartura, planos e perspectiva. E hoje?
O “Stagium” veio com uma proposta
inovadora e estimulou a criação de novos trabalhos e de novos grupos pelo
Brasil afora. Só para citar dois grandes grupos que também viriam enriquecer a
cena artística brasileira: em 1975, o “Grupo Corpo”, de Belo Horizonte e em
1977, o “Cisne Negro Companhia de Dança”, de São Paulo.
A década de setenta me trouxe
alegrias e me fez tomar decisões importantes. Seguem aqui, elencadas: 1− Minha
mudança para Maceió, na verdade, um retorno, pois saí daqui aos dois anos de
idade; 2− Meu casamento; 3− A fundação do Ballet Eliana Cavalcanti, primeira
escola de balé de Alagoas; 4− Os convites para pertencer a duas companhias
profissionais: o Ballet Stagium, de São Paulo (1972) e a Associação de Ballet
do Rio de Janeiro (1974); 5− A compra de um terreno, através da Leão Empreendimentos,
no Jardim Alagoas, em 1979, onde seria construída a sede da nossa escola; 6−
Seria mãe pela primeira vez.
Em 1975, eu já não pertencia
mais ao Grupo de Ballet do Recife, pois o número crescente de alunos não me
dava tréguas, exigindo uma dedicação de cerca de 18 horas diárias, incluindo,
nesse bojo, algumas horas extras aos sábados, domingos e feriados, com ensaios,
redação de circulares para os pais, ofícios, projetos,
pesquisa de músicas, criação de figurinos etc. Maceió seria o meu chão, a minha
realidade. Aqui nasceram nossos três filhos, e hoje já temos três netos.
Resumindo: considero-me uma obreira em prol da
arte da dança, consciente do meu papel nesta vida, e triste com o cenário que
se impõe no mundo. Estamos vivendo uma era cruel, carregada de egoísmo,
violência, descompromisso e deslealdade. Torço para que seja um momento de
transição para um mundo melhor, que, pela minha idade, não deverei alcançar. O
combate vale a pena quando se tem um propósito, ainda que baseado na fé
absoluta de que Deus está no comando. O meu combate sempre esteve muito claro:
em prol da arte, em prol da dança. Através da arte, de uma maneira geral,
podemos dignificar mais o mundo, dar mais cidadania às pessoas. Por que os
políticos, em sua maioria, não têm sensibilidade para a arte, para a cultura? A
resposta... sabemos.