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sábado, 16 de abril de 2016

Memória e cotidiano. Eliana Cavalcanti. Entre o céu e a terra


Meu pai


Entre o céu e a terra
                                                                              

                                                                Eliana Cavalcanti

                                                       

      Entrei às pressas no Teatro de Santa Isabel. Logo no saguão, fui recebida por um dos organizadores do festival, que me anunciou que tinha convites para mim, na bilheteria. E me perguntou: “Onde estão os outros?”. Ao que lhe respondi: “Estão chegando. É que eles foram para um hotel, enquanto que eu estou hospedada na casa de meu irmão, que fica mais perto daqui”. Esclarecendo: eu estava no Recife, vinda de Fortaleza com alguns dos nossos alunos que tinham se apresentado no palco do Teatro José de Alencar, numa seletiva para o “Passo de Arte”, concurso de dança que acontece todos os anos em São Paulo, na cidade de Indaiatuba.
         Estávamos eufóricos, pois, dos cinco alunos do Ballet Eliana Cavalcanti que se submeteram ao concurso, quatro haviam sido selecionados para a final do “Passo de Arte”, o segundo maior festival de dança do país, só perdendo para o de Joinville. Na bilheteria, uma moça muito simpática sugeriu-me não esperar pelos meus bailarinos, pois já ia ser dado o terceiro sinal. Ao me dirigir para a escadaria que dá acesso à plateia, um dos lanterninhas me informou que meu assento era mais em cima. Subi as escadas quase correndo, e outro lanterninha me acompanhou até um camarote localizado frontalmente ao palco, abriu a porta e, para surpresa minha, já havia um senhor bem instalado. Cumprimentamo-nos com as luzes já se apagando. E o espetáculo começou. Após uns dez minutos de coreografia, o meu pessoal chegou e se instalou, silenciosamente, no camarote do lado esquerdo. Comentei baixinho: Ué, ficamos separados!
        
Teatro Santa Isabel, Recife
Finda a primeira coreografia, eu ainda estava extasiada, quando o senhor me perguntou: “Você quer ler o programa?”. Agradeci e expliquei que já o tinha, pois havia assistido ao mesmo espetáculo, no dia anterior, em Fortaleza.  Do camarote da direita, um rapaz perguntou em tom de brincadeira: “Você está nos perseguindo?”. Em seguida, apresentou-se como cinegrafista responsável pelo material documental da Companhia. Começamos a conversar e lhe disse estar muito feliz com o nível da Companhia do Estado de São Paulo e que havia, em Fortaleza, trocado umas ideias com Iracity Cardoso, sua diretora, que eu já conhecia desde 1973, quando fizemos aulas juntas no Ballet Stagium. E o senhor, que até então se mantinha calado, interferiu na conversa, dizendo: “Interessante, pois em 1973 hospedei na minha casa, em São Paulo, a filha de um grande amigo meu daqui do Recife, e outra moça, também bailarina, que foram fazer um curso de férias no Stagium. Você conhece Helena Assunção Cavalcanti?”. E eu: “Conheço muito. O senhor sabe que a outra moça era eu?”. O homem ficou perplexo. “Você? Eu mal posso acreditar!”. Nisso, apagaram-se as luzes e nos endireitamos nas cadeiras para assistir a mais um trabalho.
          Quando eu ia saindo da casa do meu irmão, antes de fechar a porta do quarto, olhei pra trás para ver se havia deixado alguma coisa fora do lugar. Foi quando avistei um exemplar do meu livro 50 anos de plié – memórias de uma alabucana, na mala entreaberta, deixada em cima da cama. Fiquei na dúvida se o levava comigo ou não. Depois, pensei: “Vou levar, sim. Vai que encontro um amigo que ainda não tem o meu livro...”. Naquele momento, ali no teatro, lembrei que no capítulo desse meu livro em que falo no Stagium, faço uma menção àquele gentil anfitrião que tão bem nos recebeu no seu elegante e confortável apartamento, no bairro de Higienópolis, em 1973. Fiquei esperando que o espetáculo terminasse. Ao lhe mostrar e ler para ele a página do livro, este homem ficou estupefato. Disse-me que não tinha o que fazer naquela noite, e que não sabia por que tinha resolvido assistir a um espetáculo de balé. Aquilo não lhe era comum. Dei-lhe o livro de presente, dedicado, naturalmente. E ele, gentilmente, me disse: “Fique à vontade, pois sei que você deve ter muitos colegas e amigos para cumprimentar, mas ligue para o seu irmão dizendo que não precisa vir lhe buscar, pois faço questão de lhe levar em casa”.
         
Santa Isabel
Lá fora, no saguão, revi, realmente, amigos de longas datas. Depois de alguns minutos, aproximei-me do senhor Alexandre, e um amigo seu, já sabendo da história (ele já havia contado sobre esse encontro “casual”, numa roda de amigos recifenses), comentou: “Alguém que muito frequentou este teatro fez com que vocês hoje se encontrassem”. E eu respondi para aquele estranho: “Se existe essa possibilidade, certamente deve-se a meu pai, que, como crítico de teatro, vivia aqui quase que diariamente (Recife, por vários anos, foi considerada a terceira cidade do país e, por isso mesmo, tinha uma efervescência cultural muito grande) e amava estar nesta casa de espetáculos.
         Meu pai, à época, ficou muito agradecido com a hospitalidade do senhor Alexandre. Fez uma visita ao seu irmão, Fernando Leal, na sua loja em Recife, pedindo- lhe que fizesse chegar às mãos do irmão uma lembrança da nossa gratidão. Ambos eram proprietários da Casa Viana Leal (uma das melhores lojas do Recife, se não a melhor). Um irmão gerenciava a loja de Recife e o outro, a de São Paulo.
          Fico com a frase do personagem Hamlet, obra do dramaturgo inglês William Shakespeare: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

                                                                          


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