les ruelles de la misère et de la faim
the alleys of misery and hunger
i vicoli di miseria e di fame
los callejones de la miseria y el hambre
PELOS BECOS DA MISÉRIA E DA FOME: A
DRAMATURGIA DE LUIZ SÁVIO DE ALMEIDA
Otávio Cabral
Quando
me decidi a estudar a dramaturgia alagoana e promovi pela primeira vez uma
reflexão crítica sobre essa dramaturgia, direcionei meu olhar para uma peça de
Luiz Sávio de Almeida, Comeram Dom Pero
Fernão de Sardinha. Essa escolha se deu, primeiro, por considerá-la, além
de um texto formalmente bem construído, uma peça que se insere na discussão
mais aflorada da modernidade no que diz respeito à construção trágica
proveniente da desigualdade social; e segundo, por ter se constituído, quando
da sua encenação, num momento de alta relevância para o teatro alagoano e, ademais,
era a primeira vez que um texto de sua autoria era encenado.
Em nossa análise enveredamos pelos
meandros da miséria, rastejando com as personagens, identificando ali as marcas
do trágico no torvelinho em que se envolvem, procurando demonstrar que, na
modernidade, esta manifestação só se faz possível mediante a relação sempre
conflituosa entre os seres humanos e o capital, na construção cotidiana da
história.
A
primeira montagem dessa peça foi feita nos anos 80 do século passado, pela
Associação Teatral das Alagoas – ATA e, recentemente, no começo dos anos 2000, com
os alunos do CESMAC, que a encenaram e representaram no Teatro de Arena Sergio
Cardoso, em Maceió. Estivemos presentes na estreia – eu, o autor e alguns dos
atores da primeira montagem– e saímos do espetáculo felizes com a montagem, mas
infelizes com a atualidade de um texto escrito trinta anos atrás. É muito
triste constatarmos que a sociedade não conseguiu superar praticamente nada daquilo
que foi discutido nos anos 80, ou seja: a fome, a desigualdade e a miséria
continuam presentes no cotidiano dos seres humanos, fazendo com que a peça
permaneça tão atual quanto antes.
Essa,
sem dúvida, tem sido a marca da dramaturgia de Luiz Sávio de Almeida, inscrita
em todas as peças de seu repertório, pelo menos naquelas que foram encenadas: Igreja Verde, que foi detentora do
premio FIAT e cumpriu uma excelente temporada nas duas oportunidades em que foi
montada. Essa peça é baseada em uma pesquisa antropológica feita pelo
folclorista José Maria Tenório Rocha, ex professor da UFAL e atualmente
residindo em Sergipe, em uma determinada comunidade do interior de Alagoas,
através da qual ele resgatou uma bíblia que teria sido escrita por um beato, líder
da comunidade, indivíduo um tanto quanto confuso na organização das ideias, o
qual cria algumas palavras inteiramente desconexas, mas que no conjunto nos
levam a deduzir o real sentido pretendido. Esse beato, que se diz possuído pelo
Espírito Santo, além do ritual religioso propriamente dito, cuja bíblia que escreveu
é a base, ainda se relaciona com as mulheres da comunidade, segundo ele para
deixá-las igualmente possuídas pelo espírito. É um texto de forte impacto
dramático que, embora tenha várias personagens, foi escrito para um só ator,
aquele que interpreta o beato, já que tudo o mais gira em torno dessa
personagem, constituindo-se assim no centro de toda a ação dramática. A peça
revela o poder aliciador da fé, capaz de seduzir, aglutinar e alienar as
pessoas desavisadas, e que se encontram à margem da sociedade,em busca de um
refúgio.
A
segunda peça encenada foi Festa das
Alagoas, cuja montagem se deu pelos alunos do antigo Curso de Formação do
Ator da UFAL, hoje Escola Técnica de Artes – ETA. Nessa época, a UFAL tinha um
Circo Cultural, que se encontrava armado na praça Sinimbu, e ali, naquele
ambiente circense, foi realizada a temporada, com uma afluência de público bem
significativa.
A
terceira peça foi A Farinhada, cuja
montagem foi feita pelo Grupo Teatral Joana Gajurú um grupo especializado em
teatro de rua e que, contrariando sua tradição, a levou para o Teatro de Arena,
tendo passado bastante tempo em cartaz, viajado por várias partes deste país e
obtido grande sucesso de público e crítica durante a temporada e por todos os
lugares onde se apresentou.
Da
quarta peça encenada nada podemos falar a respeito, porque nos encontrávamos
residindo fora do estado. Uma noite em
Tabaris, escrita em parceria com Macleim Damasceno, gira em torno das
prostitutas que povoavam o antigo bairro de Jaraguá.
Luiz
Sávio de Almeida possui várias outras peças que não mereceram ainda,
lamentavelmente, uma montagem. Há algumas de grande valor, escritas durante a
ditadura, mas que precisariam de uma releitura para verificar se não ficaram
perdidas no túnel do tempo, coladas demais à realidade: Libertad e Angola Janga.
Outras, de igual nível artístico, estão aguardando uma montagem para que o
público continue a desfrutar do prazer do texto saviano, sempre instigante e
com sabor de denúncia social. Cito como exemplo algumas que me vêm à memória: El Tum Tum Tum del Corazón, uma
comédia, na verdade uma fina ironia que ele faz consigo próprio, a partir de um
episódio hipocondríaco que o levou ao hospital; a outra peça, também uma
comédia, é um monólogo e se chama Zé
Lodaro como pano pinico veio americano, que é um texto igualmente irônico,
com um teor surrealista e que remete a suas origens, na cidade de Capela, em
Alagoas e por fim Berratório a São
Francisco em Fá de Fava.
Na
verdade, falar da dramaturgia de Luiz Sávio de Almeida é falar de sua principal
característica, seja na vida ou na arte, que é a ironia. Seus textos, de uma
forma geral, possuem esse teor, e justamente por isso inserem-se no rol da
literatura mais arguta, porque questionadora, que revolve os alicerces da
sociedade, demole a hipocrisia da classe dominante e rasteja junto com os
miseráveis de seu tempo.
Trata-se,
portanto, de um dramaturgo da melhor qualidade, cuja produção literária em
muito contribui não apenas para o aprimoramento do nível artístico de quem o
encena, mas sobretudo para proporcionar ao espectador a possibilidade de
deleite com uma obra inteligente, instigante, alegre e emocionante.
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