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domingo, 3 de abril de 2016

Bruno César Cavalcanti. Luiz Sávio de Almeida e a Etnologia



Luiz Sávio de Almeida e a Etnologia
Bruno César Cavalcanti[1]

Num Brasil saído do século raciológico, o XIX, obras de síntese aludiam a elementos raciais e étnicos formadores do povo brasileiro suscitando a dúvida se seríamos mais bem explicados pelo conceito de classe ou de etnia. Esse impasse, no entanto, mostrou-se frágil para a geração que formou e informou a Luiz Sávio de Almeida, sendo vencido pelo argumento de que o social estabelece e contextualiza os conteúdos culturais e não o contrário. Na verdade, Sávio pratica uma sociologia histórica bem informada contra essa armadilha epistemológica culturalista, que leva os desprevenidos a aludirem a “contribuições” étnicas para o cadinho brasileiro ou, no caso, alagoano.
Nosso autor escapa disso, pois seu aporte é marcado por uma preocupação sempre explícita com a matriz de produção da formação social, o núcleo duro de seu trabalho, fazendo-o livrar-se de um procedimento diletante quando se trata de invocar as questões étnicas e a elas atribuir qualquer essencialismo, algo ainda tão corrente entre nós como nas invocações narrativas da marca “caeté” fartamente atribuída a pessoas e episódios alagoanos, num verdadeiro abuso discursivo; pois mesmo que metafórico esse uso pode assumir ares demagógicos, quando não cínicos, sendo do nome do povo dizimado retirado a última sevícia com essa invocação exagerada do etnônimo. Luiz Sávio escapa à tentação, uma vez que o seu referencial etnológico suplanta facilmente essa mixórdia alagoana.
Por outro lado, estudiosos contemporâneos da história de Alagoas têm sido denominados em algumas oportunidades de etnólogos ou de antropólogos – até mesmo de etnógrafos! –, num abuso heurístico que nada esclarece e muito confunde. A imprecisão no emprego dos termos, resultante de benevolência amalgamada com desconhecimento, deve ser evitada em nome do esclarecimento e do mérito. Especialmente etnógrafo, diga-se, nenhum destes escritores o é ou foi. É verdade, contudo, que eles flertam a etnologia com competência e propriedade.  Parece ser este o caso de Luiz Sávio de Almeida, que certamente está entre aqueles que, num gesto empático, mais visitam in sito as gentes sobre as quais escreve – o que o aproxima do modus operandi etnográfico, mas isso não configura um fator suficiente para enquadrá-lo nesta condição uma vez que sua base de dados permanece arquivística e documental, à moda do historiador. Mas tanto em sua produção científica quanto ficcional encontram-se outras de suas pegadas transdisciplinares que o aproximam de um diálogo com temas comuns a antropólogos e historiadores: o cotidiano urbano, a memória coletiva, a religiosidade, diferentes formas de sociabilidades populares, a vida dos operários ou dos sítios e fazendas etc. Nessas frentes, é possível sentir um sopro de antropologia ou um acento a mais de importância dada à dimensão simbólica, às significações atribuídas pelos atores sociais aos seus atos e rotinas. Mas como “a dor da gente não sai no jornal”, evidentemente que se trata de uma operação limitada para quem trabalha com documentos mais do que diretamente com pessoas.
De forma mais explícita, a marca etnológica em sua obra aparece em 17 publicações reunindo textos dele e de vários autores que participam da coleção Índios do Nordeste, organizada por ele. É uma contribuição definitiva para as pesquisas historiográficas e etnológicas em Alagoas e além. Aos temas envolvendo populações indígenas soma-se, no caso, sua produção com as questões gravitando em volta dos contingentes afrodescendentes e de vários temas afro-brasileiros, presentes em sua vasta obra. Sávio retrata diferentes dimensões das condições sociais e culturais do negro em Alagoas desde o escravo ao folião do carnaval, do vendedor de sururu ao contador de estórias fantásticas na Zona da Mata. Em suma, de Tia Marcelina à Nega Jujú ou do Moleque Namorador ao Benedito do Peri-Peri as suas escolhas falam por si e informam, ao mesmo tempo, vínculos temáticos de simpatia e de valorização do humano que habita em cada um dessas personagens que traduzem classes e segmentos de pessoas com seus sentidos de vida.


[1] Antropólogo, professor do Instituto de Ciências Sociais da UFAL.

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