Este artigo foi publicado no Suplemento Campus, jornal O Dia, ano 2, nº 108, 22 a 28 de março de 2015
obiettivi di democrazia
objectifs de la démocratie
democracy objectives
Universidade Federal de Alagoas -
Bacharelado
em Direito. Universidade Federal de Pernambuco – Mestrado em Direito. Experiência Profissional 1990/2012 – Ministério Público do Estado de Alagoas/ 19ª Promotoria.
1992 - Centro de Estudos Superiores de Maceió-Professora -
“Direito Civil VI”. 2002 –
Universidade Federal de Alagoas
–
Aprovação/concurso público-Professor Assistente. II)
Idiomas – Inglês e Italiano. III)
Publicações III.I – Livro - Prova Ilícita- 2000. III.II) Artigos e peças judiciais - Revista do Ministério Pùblico de
Alagoas, Revista Trabalhista Consulex e CD-ROM Juris Síntese Millenium. III.III – Palestras proferidas em eventos promovidos por Secretarias de
Estado de Alagoas, Ministério Público, Centro de Estudos Superiores de Maceió e
Instituto Brasileiro de Direito de Família. III.IV -
Homenagens recebidas – Comendas, medalhas, troféus e homenagens recebidas
do Governo do Estado de Alagas, Academia de Letras e
Artes do Nordeste e Instituto
Carlos Conce/Comunicação e Liderança.
VIOLAÇÕES AOS FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO
Maria Cecília Pontes
Carnaúba
1 INTRODUÇÃO
Os fundamentos e objetivos dos Estados ocidentais democráticos, têm
como base o princípio de justiça do qual são elementos estruturantes:
igualdade, solidariedade e verdade. Destinam-se a reger a convivência
comunitária de modo seguro e possibilitar o florescimento das potencialidades individuais,
como método de crescimento e perpetuação do Estado. A infração a esses
fundamentos e objetivos é conhecida por corrupção, no exato sentido de que
subverte a escala de valores humanos, afronta a predisposição moral inata para
o convívio em grupo e se traduz em subversão do fim estatal de promoção do bem
de todos.
A atual geração é a primeira que recebeu o encargo de melhorar a
qualidade de vida do planeta e pesquisas de campo mostram que a redução das
desigualdades sociais é o caminho mais eficiente para obtenção de melhores
condições de vida para todos[i].
A concretização da igualdade de oportunidades aos cidadãos é a base sobre a
qual se estruturam as democracias, por essa razão, a infração aos objetivos e
fundamentos do Estado democrático viola esse propósito e coloca em risco sua
estabilidade.
2 CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS
O hábito de afrontas vigorosas
aos fundamentos e objetivos estatais revela desequilíbrio social que produz,
nos cidadãos responsáveis por puni-las e impedir novas afrontas, o sentimento
de absoluta inadequação individual à realidade concreta da comunidade. Reagir
eficazmente a essas violações é causa de rejeição social, pois os agentes são
assombrados pela dor da inaceitação, no seio social onde estão inseridos e pela
sensação de não pertença. Ambas provocam uma fragilização emocional denominada
“medo de ser inadequado”[i],
consequentemente, ser isolado da afetividade grupal. Não se achar pertencido
pela comunidade onde vive traz consigo os fantasmas da solidão, incompreensão e
da falta de reconhecimento pelo trabalho que se desenvolve em favor do bem
estar de todos.
Os vínculos do cidadão com a família, com vizinhos, com o lugar onde
mora e meio ambiente, onde vive, produzem a sensação de conforto, segurança de
sentir-se parte de um grupo, de uma história que se estende por tempo maior que
sua permanência na Terra. O indivíduo sente-se acompanhado na existência. Tal
circunstância é forte elo de união entre os membros de uma comunidade, os faz
identificar-se como semelhantes, coautores da história comum. O esmorecimento
desses vínculos acirra o medo do abandono do isolamento que, para o
inconsciente, é símbolo de morte, poiso ser humano não sobrevive sozinho.
O progresso, a despeito dos indispensáveis benefícios que oferece à
humanidade, também fortalece o medo de ser deixado para trás, de não ser capaz
de acompanhar as inovações que o desenvolvimento proporciona e perder a
capacidade de se inserir nas transformações de comportamento dele decorrentes.
Esta é uma das formas de abandono. Por essa razão, o homem civilizado reaje tão
fortemente ao novo, ao ponto de erguer barreiras psicológicas que o protegem do
choque causado pela inovação[ii].
O risco de inaceitação intimida as ações de combate às violações aos
fundamentos e objetivos estatais, porque perturba o inconsciente dos que
assumem esse encargo, como símbolo de abandono, sempre que esse desvio de
sociabilidade está arraigado, marcantemente, na comunidade.
3 REFLEXO SOCIAL
Os fundamentos e objetivos Estatais, no Brasil, são fixados nos artigos
1º e 3º da Constituição, têm a finalidade de manter a união e o bem estar da
comunidade a que se destinam, como elemento de reforço da coesão e preservação
dos vínculos históricos e sociais de materialização do bem de todos, que é
concretização do ideal de igualdade. Quando o ambiente social está prejudicado
por um sistema vigoroso de violações desses fundamentos e objetivos, significa
que há grande quantidade de indivíduos impregnados por essa distorção de comportamento,
em todos os espaços sociais. Os valores: verdade, justiça e solidariedade estão
fragilizados como elementos de orientação comunitária.
Tal circunstância contamina toda a comunidade, por isso, as vozes que
se levantam contra a violação dos fundamentos e objetivos estatais, são
minoria. Essa condição lhes impõe incompreensões, críticas que ameaçam a
sensação de pertencimento e aceitação social, os induz a imaginar que o empenho
na defesa da concretização dos objetivos e fundamentos do Estado é trabalho
penoso e inútil.
Os grupos sociais são regidos por normas de moral que variam de acordo
com a evolução e desenvolvimento do local onde estão insertos. São inatas no
ser humano, se constituem em função da alma humana que torna possível a
convivência grupal e são tão antigas quanto a própria humanidade[i]. Por
essa razão, o hábito de afrontar os fundamentos e objetivos estatais, que
estruturam as normas de convivência, por um número elevado de indivíduos no
grupo, é mostra de adoecimento social.
A defesa intransigente dos fundamentos e objetivos estatais é condição
de subsistência do Estado, sua constante violação é prática destrutiva dos
elementos de segurança social e sustentação do Estado. É contradição intestina
que a estabilidade estatal dependa do bem estar de todos e, a despeito disso,
se efetivem ações violadoras das normas que garantem a concretização desse bem
estar. Viola-se o acordo de igualdade, que viabiliza a existência desse mesmo
Estado. Esse modo de agir, autofágico, decorre do enfraquecimento do vínculo
histórico e fundamental de solidariedade, bem como do valor, igualmente
histórico e fundamental, de verdade. ambos resultam do conhecimento atávico de
convivência como condição de sobrevivência.
O desprestígio da solidariedade
e da verdade interfere no comportamento individual dentro da comunidade e é
causa das ações de violação dos objetivos e fundamentos estatais. A
participação nas violações dos fundamentos e objetivos estatais pode ser
direta, o cometimento da afronta, ou indireta, a flexibilização da escala de
valores humanos para possibilitar a aceitação e acomodação a esse desvio de
conduta. Esta é método de garantia de convivência e integração no grupo,
através da tolerância com os agentes que violam os referidos fundamentos e
objetivos. Reflete a acomodação social. Por isso, as ações em defesa da
concretização dos fundamentos e objetivos estatais encontram resistência social
para produção de resultado efetivo e que as pratica enfrenta empecilhos que
podem afetar sua sensação de pertença ao grupo social.
Situações de crise social são o resultado da conexão de diversas
situações de crise individual[ii]
assim, o grande número de violações aos objetivos estatais também adoece as
instituições incumbidas de defesa da estabilidade do Estado. Essas, também,
estão mergulhadas na crise de valores que vitima a sociedade, porque os
indivíduos que a integram estão vitimados por esse desvio de conduta.
Os membros dessas instituições, que buscam corrigir as violações aos
objetivos e fundamentos estatais, precisam encontrar uma forma de serem
efetivos, sem que isso lhes custe exclusão do grupo social onde estão
inseridos. Esse modo de agir visa esmorecer o medo do abandono e tal cuidado é
devido, inclusive, em relação ao próprio subgrupo encarregado de proteger e
garantir a concretização dos fundamentos e objetivos do Estado democrático.
4 PROTEÇÃO SOCIAL
O Estado social democrático, com a positivação de seus objetivos e
fundamentos, é, atualmente, inegável avanço das formas de organização e gestão
de sociedades. Com o objetivo de materializar a igualdade entre os cidadãos,
insere o dever de concretização de sistema de proteção social, como conteúdo
implícito dos fundamentos e objetivos estatais. Esse sistema é constituído pela
garantia dos direitos à educação, moradia e saúde que são o alicerce para o
desenvolvimento das potencialidades individuais.
Ocorre que a realização das democracias não tem executado,
adequadamente, o sistema de proteção social, o que prejudica a materialização
da garantia coletiva de desenvolvimento das potencialidades individuais e
proteção individual contra eventuais desventuras. Esta é a forma mais grave de
violação dos fundamentos e objetivos estatais, pois o Estado depende do
desenvolvimento individual para crescimento, e da universalização de
oportunidades de desenvolvimento, para assegurar a estabilidade da convivência.
O Estado somente pode garantir o bem estar de todos quando tem um sistema de
proteção social eficiente.
A falta de concretização adequada do sistema de proteção social acentua
as desigualdades sociais e dificulta a materialização do princípio de justiça
que é elemento de sustentação dos fundamentos e objetivos estatais. O princípio
de justiça se revela através do compartilhamento equitativo dos recursos
exteriores destinados à sobrevivência, inclusive aceitação da diferença,
reconhecimento dos talentos e esforços profissionais, pois estes cooperam para
a saúde emocional e esta interfere na sobrevivência.
O funcionamento adequado do sistema de proteção social é garantia de
tratamento igual aos cidadãos, para que tenham condições mínimas de
desenvolvimento de suas habilidades. É modo de assegurar a isonomia através da
oferta de iguais oportunidades de desenvolvimento individual. É este o objetivo
da democracia, como governo baseado na lei[iii]
e na igualdade, para produção do bem estar de todos.
A deficiência de funcionamento do sistema de proteção social viola os
fundamentos e objetivos estatais através do comprometimento da igualdade, que
os integram. Se um Estado busca estruturar-se como democracia. é indispensável
que cuide da materialização dos fundamentos e objetivos estatais normatizados,
dos quais é parte integrante o sistema de proteção social, como estrutura para
edificação da igualdade que é base do princípio democrático. A confiança na
concretização desses objetivos e fundamentos é que possibilita o surgimento da
solidariedade social e estabilidade do Estado.
Nas sociedades vitimadas pelas frequentes e vivas violações aos
objetivos e fundamentos estatais, a reação a esse desvio de conduta é sinônimo
de exposição a sequenciados golpes à imagem, interna e externa, de quem se opõe
a ele e aviva o medo atávico do abandono. Há trabalho relevante em prol de
materialização de justiça, mas os resultados parecem não se concretizar. O
Estado se apresenta instável em suas relações internas, em virtude da quebra de
confiança nas relações interpessoais, sobretudo, em relação ao vínculo da
gestão com os objetivos e fundamentos estatais.
5 SÍMBOLO MITOLÓGICO
Nas comunidades contaminadas pelo hábito de violação dos fundamentos e
objetivos estatais, não se curvar a tais ofensas, por dever cívico ou
funcional, desafia a inflição da mesma pena imposta às Danaides, apesar de que
a causa de imposição seja exatamente oposta. As Danaides eram irmãs que
mataram, por vingança, seus maridos, na noite de núpcias, e receberam, a título
de castigo eterno, a pena de encher um tonel sem fundo. Sinal de trabalho
infinito, exaustivo e sem resultado. O castigo lhes foi imposto em retribuição
à prática de um ato socialmente reprovável, porque prejudicial ao bem estar e
equilíbrio comunitários.
Nessa época, a sociedade precisava ser estimulada ao crescimento e à
pacificidade, como requisito de sobrevivência. Era a semente do desenvolvimento
dos valores humanitários e o início da recuperação das noções de igualdade
entre os seres humanos. A ideia de igualdade foi bastante comprometida pelos
governos anteriores à democracia e os mitos revelam uma tendência de
estruturação dessa forma de governo com base na igualdade dos cidadãos.
A punição das deusas assumiu o caráter de eternidade, como sinal de ato
imperdoável, em virtude da necessidade de repressão à deslealdade que significa
ruptura dos vínculos históricos de partilha e cooperação e, maiormente, depreciação
do valor da verdade. O mito das Danaides marca o propósito social de
reestruturação desses elementos culturais que integram o conteúdo da
solidariedade pois, se descumpridos, os danos se refletem no bem estar do
grupo.
As Danaides, de fato, ofenderam os propósitos pacifistas mas, a maneira
como o fizeram, foi, sobremaneira, reprovável. Assumiram o compromisso de
casamento e quando os noivos se apresentaram, para concretizar o ajuste, foram
atraiçoados. É a deslealdade que se pune com maior vigor, pois já era
perceptível que não há sociedade harmônica e saudável sem indivíduos
essencialmente verdadeiros. O crime que elas cometeram ofende dois valores
humanos basilares, indispensáveis para o crescimento espiritual e sobrevivência
social: confiança e verdade que são condição para florescimento individual e
pacificidade social pois favorecem a solidariedade.
Ao tempo dos mitos, a verdade tinha a face da parresia, dever de dizer
a verdade, o cidadão não podia se furtar a tarefa de ser verdadeiro[iv].
Essa mensagem foi integralmente recepcionada como base do Estado Democrático.
A mitologia pune as deusas, pelo crime que cometeram, como forma de
estímulo à cultura de paz e desenvolvimento que têm, como elemento
estruturante, a verdade. Hoje, a legislação e a filosofia do direito também
buscam a verdade, mas a vivência do dia a dia tem regras menos progressistas e
o trabalho de combate às violações aos fundamentos e objetivos estatais ainda
se faz a custa de grande sacrifício pessoal dos agentes. Estes são punidos por
defenderem os valores humanitários de solidariedade e verdade, as Danaides
formam punidas por afrontá-los. A
punição tem o mesmo objeto mas o objetivo é frontalmente oposto.
6 CONCLUSÃO
A evolução da humanidade, rumo à vivência da harmonia social e do
crescimento do homem, é inevitável, mas não se faz sem grande resistência de
propósitos injustos, predatórios de igualdade, através da violação aos
fundamentos e objetivos estatais. É a disseminação desses propósitos, que
fragiliza a igualdade, a verdade e a solidariedade como fundamentos do Estado
Democrático. A quebra de confiança nas relações interpessoais e nas ações de
governo, como resultado do hábito de violação dos fundamentos e objetivos do
Estado, é grande empecilho ao florescimento da solidariedade. Essa
circunstância alimenta o medo de ser vitimado por crimes, o medo do outro, que
se imagina possa ser criminoso e especialmente, medo do abandono. Medo é fator
de enfraquecimento da solidariedade no grupo social.
Essa circunstância parece decorrer da equivocada percepção do caminho a
ser percorrido pela civilização humana e pelo homem como parte da criação. Traz
à tona a inquietante pergunta sobre a evolução humana: ao longo do tempo,
melhoramos como seres humanos e como civilização, ou pioramos?
Nesse sentido há uma consideração inafastável. Se a civilização humana
é beligerante por natureza, desde os primórdios combate para conseguir
alimentos, para conquistar espaços territoriais mais amplos, para auferir
melhores vantagens econômicas e se, nesses combates, sobrevivem os vencedores e
são eliminados os vencidos e, por fim, se os vencedores são, forçosamente, os
seres com maior capacidade de destruição, a população atual da Terra é de
descendentes de pessoas que garantiram e garantem sua sobrevivência à custa da
violência e eliminação do opositor ou do diverso.
Parece que a civilização moderna somente trocou as armas de destruição
que utilizou nos tempos antigos, antes eram as lanças, hoje é a palavra
injusta, que busca esconder os propósitos e as ações de violação aos
fundamentos e objetivos estatais. Tais propósitos e violações ferem a dignidade
humana, o princípio de igualdade, e destrói o vínculo basilar de solidariedade,
que tem como valor, igualmente fundamental, a verdade.
A letalidade da arma atual é
muito maior que as precedentes, as lanças eliminavam, apenas, os inimigos, a
palavra injusta alcança, também, quem as utiliza e lhe envenena a alma. A
evolução da comunicação trouxe irrecusáveis benefícios ao homem, mas também,
potencializou o poder devastador da palavra injusta. É ela que favorece, viabiliza e cria a
estrutura de acordos e anuências capaz de assegurar constantes violações aos
fundamentos e objetivos estatais, em prejuízo da igualdade que é base da
democracia.
[i] JUMG, Carl Gustav – Psicologia do Inconsciente,
Petrópolis, Vozes, 21ª ed., 2012, p.38.
[ii] PATOCKA, Jan – Plato
and Europe, California, Sanford, 2002, p.03.
[iii] GALLI, Carlo – Il Disagio dela Democrazia, Torino,
Giulio Einaudi editore, 2011, p. 10
[iv] FOUCAULT, Michel – A Coragem da Verdade, São Paulo,
Martins Fontes, 2011, p.18.
[i] BAUMAN, Zygmunt, - Confiança e Medo na Cidade, Rio de Janeiro, Zahar, 2009, p.17 [ii] JUNG, Carl Gustav – O Homem e seu Símbolos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2ª ed.especial, 2008, p.33.
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