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quarta-feira, 6 de maio de 2015

VIOLAÇÕES AOS FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO


Este artigo foi publicado no Suplemento Campus, jornal O Dia, ano 2, nº 108,  22 a 28 de março de 2015



obiettivi di democrazia
objectifs de la démocratie
democracy objectives
  

Universidade Federal de Alagoas - Bacharelado em Direito.  Universidade Federal de Pernambuco –  Mestrado em Direito. Experiência Profissional 1990/2012 – Ministério Público do Estado de Alagoas/ 19ª Promotoria. 1992 - Centro de Estudos Superiores de Maceió-Professora - “Direito Civil VI”. 2002 – Universidade Federal de Alagoas – Aprovação/concurso público-Professor Assistente. II) Idiomas – Inglês e Italiano.  III) Publicações III.I – Livro - Prova Ilícita-  2000. III.II) Artigos e peças judiciais - Revista do Ministério Pùblico de Alagoas, Revista Trabalhista Consulex e CD-ROM Juris Síntese Millenium. III.III –  Palestras proferidas  em eventos promovidos por Secretarias de Estado de Alagoas, Ministério Público, Centro de Estudos Superiores de Maceió e Instituto Brasileiro de Direito de Família. III.IV - Homenagens recebidas – Comendas, medalhas, troféus e homenagens recebidas do Governo do Estado de Alagas, Academia de Letras e Artes do Nordeste e Instituto Carlos Conce/Comunicação e Liderança.





VIOLAÇÕES AOS FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO

Maria Cecília Pontes Carnaúba



1 INTRODUÇÃO



Os fundamentos e objetivos dos Estados ocidentais democráticos, têm como base o princípio de justiça do qual são elementos estruturantes: igualdade, solidariedade e verdade. Destinam-se a reger a convivência comunitária de modo seguro e possibilitar o florescimento das potencialidades individuais, como método de crescimento e perpetuação do Estado. A infração a esses fundamentos e objetivos é conhecida por corrupção, no exato sentido de que subverte a escala de valores humanos, afronta a predisposição moral inata para o convívio em grupo e se traduz em subversão do fim estatal de promoção do bem de todos.

A atual geração é a primeira que recebeu o encargo de melhorar a qualidade de vida do planeta e pesquisas de campo mostram que a redução das desigualdades sociais é o caminho mais eficiente para obtenção de melhores condições de vida para todos[i]. A concretização da igualdade de oportunidades aos cidadãos é a base sobre a qual se estruturam as democracias, por essa razão, a infração aos objetivos e fundamentos do Estado democrático viola esse propósito e coloca em risco sua estabilidade.

2 CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS




 O hábito de afrontas vigorosas aos fundamentos e objetivos estatais revela desequilíbrio social que produz, nos cidadãos responsáveis por puni-las e impedir novas afrontas, o sentimento de absoluta inadequação individual à realidade concreta da comunidade. Reagir eficazmente a essas violações é causa de rejeição social, pois os agentes são assombrados pela dor da inaceitação, no seio social onde estão inseridos e pela sensação de não pertença. Ambas provocam uma fragilização emocional denominada “medo de ser inadequado”[i], consequentemente, ser isolado da afetividade grupal. Não se achar pertencido pela comunidade onde vive traz consigo os fantasmas da solidão, incompreensão e da falta de reconhecimento pelo trabalho que se desenvolve em favor do bem estar de todos.

Os vínculos do cidadão com a família, com vizinhos, com o lugar onde mora e meio ambiente, onde vive, produzem a sensação de conforto, segurança de sentir-se parte de um grupo, de uma história que se estende por tempo maior que sua permanência na Terra. O indivíduo sente-se acompanhado na existência. Tal circunstância é forte elo de união entre os membros de uma comunidade, os faz identificar-se como semelhantes, coautores da história comum. O esmorecimento desses vínculos acirra o medo do abandono do isolamento que, para o inconsciente, é símbolo de morte, poiso ser humano não sobrevive sozinho.

O progresso, a despeito dos indispensáveis benefícios que oferece à humanidade, também fortalece o medo de ser deixado para trás, de não ser capaz de acompanhar as inovações que o desenvolvimento proporciona e perder a capacidade de se inserir nas transformações de comportamento dele decorrentes. Esta é uma das formas de abandono. Por essa razão, o homem civilizado reaje tão fortemente ao novo, ao ponto de erguer barreiras psicológicas que o protegem do choque causado pela inovação[ii].

O risco de inaceitação intimida as ações de combate às violações aos fundamentos e objetivos estatais, porque perturba o inconsciente dos que assumem esse encargo, como símbolo de abandono, sempre que esse desvio de sociabilidade está arraigado, marcantemente, na comunidade.

3 REFLEXO SOCIAL




Os fundamentos e objetivos Estatais, no Brasil, são fixados nos artigos 1º e 3º da Constituição, têm a finalidade de manter a união e o bem estar da comunidade a que se destinam, como elemento de reforço da coesão e preservação dos vínculos históricos e sociais de materialização do bem de todos, que é concretização do ideal de igualdade. Quando o ambiente social está prejudicado por um sistema vigoroso de violações desses fundamentos e objetivos, significa que há grande quantidade de indivíduos impregnados por essa distorção de comportamento, em todos os espaços sociais. Os valores: verdade, justiça e solidariedade estão fragilizados como elementos de orientação comunitária.

Tal circunstância contamina toda a comunidade, por isso, as vozes que se levantam contra a violação dos fundamentos e objetivos estatais, são minoria. Essa condição lhes impõe incompreensões, críticas que ameaçam a sensação de pertencimento e aceitação social, os induz a imaginar que o empenho na defesa da concretização dos objetivos e fundamentos do Estado é trabalho penoso e inútil.

Os grupos sociais são regidos por normas de moral que variam de acordo com a evolução e desenvolvimento do local onde estão insertos. São inatas no ser humano, se constituem em função da alma humana que torna possível a convivência grupal e são tão antigas quanto a própria humanidade[i]. Por essa razão, o hábito de afrontar os fundamentos e objetivos estatais, que estruturam as normas de convivência, por um número elevado de indivíduos no grupo, é mostra de adoecimento social.

A defesa intransigente dos fundamentos e objetivos estatais é condição de subsistência do Estado, sua constante violação é prática destrutiva dos elementos de segurança social e sustentação do Estado. É contradição intestina que a estabilidade estatal dependa do bem estar de todos e, a despeito disso, se efetivem ações violadoras das normas que garantem a concretização desse bem estar. Viola-se o acordo de igualdade, que viabiliza a existência desse mesmo Estado. Esse modo de agir, autofágico, decorre do enfraquecimento do vínculo histórico e fundamental de solidariedade, bem como do valor, igualmente histórico e fundamental, de verdade. ambos resultam do conhecimento atávico de convivência como condição de sobrevivência.

  O desprestígio da solidariedade e da verdade interfere no comportamento individual dentro da comunidade e é causa das ações de violação dos objetivos e fundamentos estatais. A participação nas violações dos fundamentos e objetivos estatais pode ser direta, o cometimento da afronta, ou indireta, a flexibilização da escala de valores humanos para possibilitar a aceitação e acomodação a esse desvio de conduta. Esta é método de garantia de convivência e integração no grupo, através da tolerância com os agentes que violam os referidos fundamentos e objetivos. Reflete a acomodação social. Por isso, as ações em defesa da concretização dos fundamentos e objetivos estatais encontram resistência social para produção de resultado efetivo e que as pratica enfrenta empecilhos que podem afetar sua sensação de pertença ao grupo social.

Situações de crise social são o resultado da conexão de diversas situações de crise individual[ii] assim, o grande número de violações aos objetivos estatais também adoece as instituições incumbidas de defesa da estabilidade do Estado. Essas, também, estão mergulhadas na crise de valores que vitima a sociedade, porque os indivíduos que a integram estão vitimados por esse desvio de conduta.

Os membros dessas instituições, que buscam corrigir as violações aos objetivos e fundamentos estatais, precisam encontrar uma forma de serem efetivos, sem que isso lhes custe exclusão do grupo social onde estão inseridos. Esse modo de agir visa esmorecer o medo do abandono e tal cuidado é devido, inclusive, em relação ao próprio subgrupo encarregado de proteger e garantir a concretização dos fundamentos e objetivos do Estado democrático. 

4 PROTEÇÃO SOCIAL 



O Estado social democrático, com a positivação de seus objetivos e fundamentos, é, atualmente, inegável avanço das formas de organização e gestão de sociedades. Com o objetivo de materializar a igualdade entre os cidadãos, insere o dever de concretização de sistema de proteção social, como conteúdo implícito dos fundamentos e objetivos estatais. Esse sistema é constituído pela garantia dos direitos à educação, moradia e saúde que são o alicerce para o desenvolvimento das potencialidades individuais.

Ocorre que a realização das democracias não tem executado, adequadamente, o sistema de proteção social, o que prejudica a materialização da garantia coletiva de desenvolvimento das potencialidades individuais e proteção individual contra eventuais desventuras. Esta é a forma mais grave de violação dos fundamentos e objetivos estatais, pois o Estado depende do desenvolvimento individual para crescimento, e da universalização de oportunidades de desenvolvimento, para assegurar a estabilidade da convivência. O Estado somente pode garantir o bem estar de todos quando tem um sistema de proteção social eficiente.

A falta de concretização adequada do sistema de proteção social acentua as desigualdades sociais e dificulta a materialização do princípio de justiça que é elemento de sustentação dos fundamentos e objetivos estatais. O princípio de justiça se revela através do compartilhamento equitativo dos recursos exteriores destinados à sobrevivência, inclusive aceitação da diferença, reconhecimento dos talentos e esforços profissionais, pois estes cooperam para a saúde emocional e esta interfere na sobrevivência.

O funcionamento adequado do sistema de proteção social é garantia de tratamento igual aos cidadãos, para que tenham condições mínimas de desenvolvimento de suas habilidades. É modo de assegurar a isonomia através da oferta de iguais oportunidades de desenvolvimento individual. É este o objetivo da democracia, como governo baseado na lei[iii] e na igualdade, para produção do bem estar de todos.

A deficiência de funcionamento do sistema de proteção social viola os fundamentos e objetivos estatais através do comprometimento da igualdade, que os integram. Se um Estado busca estruturar-se como democracia. é indispensável que cuide da materialização dos fundamentos e objetivos estatais normatizados, dos quais é parte integrante o sistema de proteção social, como estrutura para edificação da igualdade que é base do princípio democrático. A confiança na concretização desses objetivos e fundamentos é que possibilita o surgimento da solidariedade social e estabilidade do Estado.

Nas sociedades vitimadas pelas frequentes e vivas violações aos objetivos e fundamentos estatais, a reação a esse desvio de conduta é sinônimo de exposição a sequenciados golpes à imagem, interna e externa, de quem se opõe a ele e aviva o medo atávico do abandono. Há trabalho relevante em prol de materialização de justiça, mas os resultados parecem não se concretizar. O Estado se apresenta instável em suas relações internas, em virtude da quebra de confiança nas relações interpessoais, sobretudo, em relação ao vínculo da gestão com os objetivos e fundamentos estatais.


5 SÍMBOLO MITOLÓGICO




Nas comunidades contaminadas pelo hábito de violação dos fundamentos e objetivos estatais, não se curvar a tais ofensas, por dever cívico ou funcional, desafia a inflição da mesma pena imposta às Danaides, apesar de que a causa de imposição seja exatamente oposta. As Danaides eram irmãs que mataram, por vingança, seus maridos, na noite de núpcias, e receberam, a título de castigo eterno, a pena de encher um tonel sem fundo. Sinal de trabalho infinito, exaustivo e sem resultado. O castigo lhes foi imposto em retribuição à prática de um ato socialmente reprovável, porque prejudicial ao bem estar e equilíbrio comunitários.

Nessa época, a sociedade precisava ser estimulada ao crescimento e à pacificidade, como requisito de sobrevivência. Era a semente do desenvolvimento dos valores humanitários e o início da recuperação das noções de igualdade entre os seres humanos. A ideia de igualdade foi bastante comprometida pelos governos anteriores à democracia e os mitos revelam uma tendência de estruturação dessa forma de governo com base na igualdade dos cidadãos.

A punição das deusas assumiu o caráter de eternidade, como sinal de ato imperdoável, em virtude da necessidade de repressão à deslealdade que significa ruptura dos vínculos históricos de partilha e cooperação e, maiormente, depreciação do valor da verdade. O mito das Danaides marca o propósito social de reestruturação desses elementos culturais que integram o conteúdo da solidariedade pois, se descumpridos, os danos se refletem no bem estar do grupo.

As Danaides, de fato, ofenderam os propósitos pacifistas mas, a maneira como o fizeram, foi, sobremaneira, reprovável. Assumiram o compromisso de casamento e quando os noivos se apresentaram, para concretizar o ajuste, foram atraiçoados. É a deslealdade que se pune com maior vigor, pois já era perceptível que não há sociedade harmônica e saudável sem indivíduos essencialmente verdadeiros. O crime que elas cometeram ofende dois valores humanos basilares, indispensáveis para o crescimento espiritual e sobrevivência social: confiança e verdade que são condição para florescimento individual e pacificidade social pois favorecem a solidariedade.

Ao tempo dos mitos, a verdade tinha a face da parresia, dever de dizer a verdade, o cidadão não podia se furtar a tarefa de ser verdadeiro[iv]. Essa mensagem foi integralmente recepcionada como base do Estado Democrático.

A mitologia pune as deusas, pelo crime que cometeram, como forma de estímulo à cultura de paz e desenvolvimento que têm, como elemento estruturante, a verdade. Hoje, a legislação e a filosofia do direito também buscam a verdade, mas a vivência do dia a dia tem regras menos progressistas e o trabalho de combate às violações aos fundamentos e objetivos estatais ainda se faz a custa de grande sacrifício pessoal dos agentes. Estes são punidos por defenderem os valores humanitários de solidariedade e verdade, as Danaides formam punidas por afrontá-los. A  punição tem o mesmo objeto mas o objetivo é frontalmente oposto.


6 CONCLUSÃO




A evolução da humanidade, rumo à vivência da harmonia social e do crescimento do homem, é inevitável, mas não se faz sem grande resistência de propósitos injustos, predatórios de igualdade, através da violação aos fundamentos e objetivos estatais. É a disseminação desses propósitos, que fragiliza a igualdade, a verdade e a solidariedade como fundamentos do Estado Democrático. A quebra de confiança nas relações interpessoais e nas ações de governo, como resultado do hábito de violação dos fundamentos e objetivos do Estado, é grande empecilho ao florescimento da solidariedade. Essa circunstância alimenta o medo de ser vitimado por crimes, o medo do outro, que se imagina possa ser criminoso e especialmente, medo do abandono. Medo é fator de enfraquecimento da solidariedade no grupo social.

Essa circunstância parece decorrer da equivocada percepção do caminho a ser percorrido pela civilização humana e pelo homem como parte da criação. Traz à tona a inquietante pergunta sobre a evolução humana: ao longo do tempo, melhoramos como seres humanos e como civilização, ou pioramos?

Nesse sentido há uma consideração inafastável. Se a civilização humana é beligerante por natureza, desde os primórdios combate para conseguir alimentos, para conquistar espaços territoriais mais amplos, para auferir melhores vantagens econômicas e se, nesses combates, sobrevivem os vencedores e são eliminados os vencidos e, por fim, se os vencedores são, forçosamente, os seres com maior capacidade de destruição, a população atual da Terra é de descendentes de pessoas que garantiram e garantem sua sobrevivência à custa da violência e eliminação do opositor ou do diverso.

Parece que a civilização moderna somente trocou as armas de destruição que utilizou nos tempos antigos, antes eram as lanças, hoje é a palavra injusta, que busca esconder os propósitos e as ações de violação aos fundamentos e objetivos estatais. Tais propósitos e violações ferem a dignidade humana, o princípio de igualdade, e destrói o vínculo basilar de solidariedade, que tem como valor, igualmente fundamental, a verdade.

 A letalidade da arma atual é muito maior que as precedentes, as lanças eliminavam, apenas, os inimigos, a palavra injusta alcança, também, quem as utiliza e lhe envenena a alma. A evolução da comunicação trouxe irrecusáveis benefícios ao homem, mas também, potencializou o poder devastador da palavra injusta.  É ela que favorece, viabiliza e cria a estrutura de acordos e anuências capaz de assegurar constantes violações aos fundamentos e objetivos estatais, em prejuízo da igualdade que é base da democracia.


O instinto de preservação das espécies, que também existe na humanidade, faz nascimentos incessantes de novos seres, essa renovação conduz a civilização a se distanciar, cada dia mais, do conhecimento atávico da destruição que deu origem à civilização atual da Terra. Esse elemento nos faz acreditar que marchamos no sentido de crescente respeito aos fundamentos e objetivos estatais, nos países democráticos, através do fortalecimento dos valores de verdade, igualdade e solidariedade. Num futuro próximo, estaremos aptos a responder que a humanidade, efetivamente, está melhor do que quando começou a escrever sua história


[i] JUMG, Carl Gustav – Psicologia do Inconsciente, Petrópolis, Vozes, 21ª ed., 2012, p.38.

[ii] PATOCKA, Jan – Plato and Europe, California, Sanford, 2002, p.03.

[iii] GALLI, Carlo – Il Disagio dela Democrazia, Torino, Giulio Einaudi editore, 2011, p. 10

[iv] FOUCAULT, Michel – A Coragem da Verdade, São Paulo, Martins Fontes, 2011, p.18.

[i] BAUMAN, Zygmunt, - Confiança e Medo na Cidade, Rio de Janeiro, Zahar, 2009, p.17 [ii] JUNG, Carl Gustav – O Homem e seu Símbolos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2ª ed.especial, 2008, p.33.  








[i] WILKINSON&PICKETT, Richard and  kate – The Spirit Level, London, Penguin Books, 2010, p.29.



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