A ARTE DE REMONTAR BALÉS
Eliana
Cavalcanti
Tive oportunidade, ao longo da minha
adolescência e início da minha idade adulta, de dançar algumas peças do
repertório clássico mundial, como “Giselle”, “O Lago dos Cisnes” e “Les
Sylphides”, pois esses eram os clássicos mais dançados àquela época. Com o
advento do videocassete, pude assistir a grandes obras de que antes só tínhamos
conhecimento através dos livros. E foi assim que no início da década de 1980
conheci “La fille mal gardée”. Passei a sonhar com a remontagem dessa obra que
de imediato havia me fascinado. Com a nossa escola ainda engatinhando e a minha
maturidade artística ainda a se fortalecer, deixei aquele sonho para a
posteridade. Vez por outra ele emergia, e eu o enterrava novamente, sem, no
entanto, sufocá-lo. A meta era uma montagem abalizada. Não sou afeita a
aventuras e tenho como princípio não me expor nem expor os nossos alunos. Tudo
tem o seu tempo certo. Nada de colocar o carro adiante dos bois. Sou assim com o programa a ser aplicado em
sala de aula, com a hora certa do uso das sapatilhas de ponta etc. A
responsabilidade para com o aluno e o público e o compromisso com a ética devem
ser considerados como condição sine qua
non numa escola de qualidade.
Em fevereiro de 2015, estava decretada a
sentença: remontaríamos “La fille mal gardée”. Com as rédeas seguras, iniciamos
a pré-produção, ou seja, a versão que alimentaria a nossa pesquisa e a escolha
dos personagens principais. A adaptação à obra seria inevitável, pois, como
entrariam as muitas turmas da escola com seus mais variados níveis? Foram então
criados papéis que não fugissem do contexto. O próximo passo, o mais difícil,
foi escolher músicas que se harmonizassem perfeitamente à partitura original da
obra. Seria um terreno por demais movediço tentar misturar épocas e estilos de
música sem ferir a sensibilidade auditiva de uma plateia que, por respeito,
considero sempre entendida. Um passo importante nessa pré-produção foi a
arquitetura do um roteiro lógico, seguido da escolha das turmas que fariam os
personagens extras.
Há uns quatro anos ou mais, levei alunos
para um grande festival nacional. E nosso aluno Emerson Mateus, por iniciativa
própria, quis apresentar a variação que preparei para ele diante de dois coaches, prática comum horas antes do
concurso, quando esses mestres observam e dão suas dicas finais. Antes do
Emerson, apresentou-se uma mocinha. Ao final de sua apresentação lhe
perguntaram, com expressão de indignação: “Minha filha, quem lhe passou essa
variação? Quem é a sua professora?”. E a menina apontou para uma jovem senhora
que estava por perto. Um dos coaches,
dirigindo-se àquela professora, indagou: “De onde você tirou essa versão?”.
Ela, desconcertada, falou tão baixinho que eu não ouvi sua resposta, mas
reparei o seu vexame, o seu rubor. E os mestres balançaram suas cabeças como
numa coreografia ensaiada, em desagravo àquela aberração estilística.
“La fille mal gardée”, que pode ser
traduzido como “a filha malcriada”, é o balé mais velho do repertório dançado
nos teatros pelo mundo afora. Originalmente, ele foi concebido e coreografado
por Jean Dauberval, um importante coreógrafo do século XVIII. Sua estreia
aconteceu na França, exatamente em 1789, ano da Revolução Francesa. Apesar de eu
nunca ter lido algum comentário sobre a possível ligação da obra com os ideais
da Revolução (liberdade, igualdade e
fraternidade), pessoalmente acredito
que eles estão sim, inseridos nessa história, ainda que de maneira
inconsciente, afinal, em grandes momentos da História, o consenso comum se agiganta. A viúva Simone, tradicionalmente
interpretada por um homem, representa a autoridade e a força, mantendo sua
filha trancada. A liberdade é o que a filha almeja, e o tempo inteiro tenta
fugir e se rebelar contra o jugo da mãe, castradora dos seus anseios. No final
do espetáculo, empregados, patrões, ricos e pobres se dão as mãos e saem
dançando, numa grande ciranda de confraternização, após a derrota da mãe, que
sucumbe ao apelo da filha e das demais personagens.
Escolhi a versão de 1960, de Sir Frederick Ashton (Royal Ballet de
Londres), a favorita do público há mais de 50 anos. Trata-se de uma comédia
romântica com rica coreografia e muita pantomima, o que dá ao bailarino a
possibilidade de se apresentar como um artista completo: um intérprete, e não
um mero executante da coreografia.
Remontar um balé de repertório implica muito
estudo, paciência e capacidade de observação aos detalhes. É preciso conhecer a
história do balé, a época em que a obra foi criada e o seu estilo. Não dá para
remontar obras sem essa consciência. Preservar a memória desses balés sem
descaracterizá-los, sem macular o seu estilo, sem fazer uma caricatura grotesca
da obra, é um grande desafio. Tenho certeza de que essa oportunidade foi
grandiosa para mim como foi enriquecedora e inesquecível para os nossos alunos
que se engajaram na pesquisa e deram conta do recado. Conclusão: sensação de
missão cumprida e um antigo sonho realizado.
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