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sábado, 23 de janeiro de 2016

Luiz Sávio de Almeida (III). Memória e cotidiano. Tio Lourenço e o Padrinho Cícero


Beata Maria Araújo

             



Tio Lourenço e sua amizade com meu Padinho Cirço

 Luiz Sávio de Almeida


                 Tio Lourecinho era complemente diferente do Tio Lourenço. Nunca tive qualquer intimidade com o  velho, o beato. Sei que era casado com a Tia Mocinha, sendo ele daqueles mundos da Capela e ela do Juazeiro do Meu Padinho Cirço.  Se o Juazeiro já é uma planta santa, o que se dirá daquele que deu sombra para o Padre Cícero Romão Batista... Vai  que o milagre se faz ouvir, que se espalha pelo mundo, e chega na Capela, que o Tio Lourenço acreditou e vendeu o que tinha e foi para a terra do Padinho, onde montou uma lojinha de vender coisas também santas, ficou por lá, encontrou Mocinha e tiveram um filho que foi arrastado pelas águas da chuva que desceram sem paralelo, inundando tudo num de repente e carregando o Paulo com seus dois burros de carga e ninguém jamais encontrou o primo e nem os animais.


               
             Tia Mocinha era meio atarracada, puxando mais para uma sertaneja meio baixinha, segundo me lembro.  Eu estive com os dois, apenas duas vezes. Uma na casa deles em Viçosa,  pois já velhos deixaram o Juazeiro e vieram à procura da família; uma outra, foi na casa da Tia Lurdes, em Arapiraca. Lembro-me dele como pessoa  alta, magra, vestindo uma roupa caqui, sertaneja nos pés, lenço vermelho no pescoço, que se não tivesse intimidade com o Padre Cícero, bem poderia passar por uma coisa mais braba, mais valente. Lia sem parar e se balançava numa cadeira.  Segundo sei e também não passo o recibo, morreu depois de uma marrada de uma vaca braba que pegou nos quarto – lá dele. Eu não sei onde está enterrado: na Viçosa ou na Canafístula.  Sei apenas que a família nunca o desamparou, a começar pelo Clóvis na Viçosa. Eu acho que ele era tio do Clóvis; suponho que o Clóvis era primo de minha avó Dondon e filho de um chamado Tio Toledo que nunca vi na minha vida.
               Pois foi... Tio Lourenço chegou cedo e se fez da intimidade do Padre. Foi atrás da terra onde se deu o milagre do Sangue Verdadeiro na boca pobre da beata Maria de Araújo e que fez milhares de pessoas cantarem e continuarem a cantar no caminho sertanejo, aberto pelo fogo da fé.:
               Ai que caminho tão longe,
              Tão cheio de pedra e areia...
              Valei-me padinho Cirço
              E a Mãe de Deus das Candeia!
              
               Padinho Cirço ele é Santo
               Ninguém pode aduvidá
               Pois faz o morto fica vivo
               E faz o mudo falá!

              
Pois um dia, Dondon minha avó, aproveitando o irmão santo e junto do Nosso Padinho, decidiu ouvir os conselhos cheios de divinutórios e partiu com dois cavalos e um burro em diretura do Juazeiro de tanto santo lenho afincado no chão, lembrando o que fizeram com o bichinho do Nosso Senhor Jesus Cristo, pagando os nossos pecados, com aqueles romanos enfiando a lança e teve um que até mirou nos olhos, embora o fogo da justiça tenha desviado aquela ponta feita pelo maligno, que dava gaitadas no inferno, tudo sibite como se as trevas fossem festas.
               Apois ela subiu no silhão e saiu mundo a dentro, procurando ir chegando pelo sertão, quem sabe mais pelo rumo do caminho do Carié. E no meio do caminho, o que vai aparecer? O Capitão Virgulino e uma parte de seu bando, tudo armado da faca de ponta ao rifle limpo e cuidado, de mira calibrada para a paixão da refrega.
              
A faca de ponta é como o punhal: fura. O punhal, já tive muito e muitos, tem uma baixa na lâmina para o vento entrar carregando as mal venturas do mundo para a ferida do que padece. E a certaza da morte é enfiar e rodar o bicho prum lado e proutro: roda pra cá, roda prá lá e puxa e se achar a dosagem pouca, crava noutro lugar que o tempo é somente piscar os olhos. Tem punhal que traspassa. O Juazeiro sempre teve gente boa nas artes de fazer estas coisas e batidas de rapadura, lá bem nos lados do Cedro ou pela Barbalha, coisa lá do povo do Carir com suas serras.

              
Rapadura da boa tem que ter bunda de abelha, sinal de que o doce era de aprovação das bicinhas, mas é meio sujo por quanto a gente fica cuspindo cabeça, bunda, asa, mas não dá nojo não.  Quando eu estava de luxo, minha mãe dizia: Besteira, triste do bicho que outro engole. Ou ainda a depender do assunto: O que não mata, engorda! Mas quando estava com quatro quentes e um fervendo ela dizia: Caminhe! Engula! Se não eu dou de ajuda!


               Apois a veia Dondon estava no silhão de seu cavalo, puxando a reserva e o burro de carga, destemida, enfrentando o desconforto dos caminhos quentes e rumando pelos ermos, pelas estradas tão cumpridas do Luiz Gonzaga, a légua tirana, arrastada de passo aqui e passo acolá, no patocopaco  vagoroso do cavalo suado, precisando também de descanso, de água e ração, de segurança nos cravos da ferradura e sonhando com as invernadas de grama fresca, sem estar bufando de cansaço. Tinha se ser cavalo bom, forte.
               E  então, quando deu fé, a Dondon sozinha no meio do mundo viu o bando atravessar na frente dela. E no levantar da vista,  estava a cara de Lampeão, suas estrelas e anéis:

- Pra onde é que a Dona vai!
- Vou pro Juazeiro, pra ver meu Padinho Cirço!
- Apois pode passar!
- Ninguém vai mexer com a devota do meu Padinho! Pode ir Dona!

               E foi assim que Dondon chegou na portaria do Paraíso, coisa que é toda cidade sagrada.  Quem poderia ter se dado mal,  foi o Tio Dionísio; que vinha com folga de uma dia ou mais. Ele também aproveitou a intimidade de Tio Lourenço com o Vigário do Santo Juazeiro e foi. Coitado! Foi falar com o Padinho.
              
O Padinho quando viu Tio Dionísio, não prestou! E começou a gritar:  Meu irmãozinho, deixe o pecado! E ainda por cima deu-lhe  uns três contravapor. Parece que o Major havia esquecido do cacho que tinha na Capela, mas o Padinho sabia e tome-lhe de cajadada.  Viva meu Padinho Cirço que ainda reina soberano no sertão:


E eu vou cantar um bendito!
Que agora se me alembrou!
A mãe de Padinho Cirço,
Ela se chama Quinô!

Ela se chama Quinô...
Maria da Conceição
E o nome do fio dela
É padinho Cirço Romão.


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