Este material foi publicado em Campus/O Dia
MYRI CAVALCANTE
Bruno César Cavalcanti
Professor universitário, antropólogo
Myri
Cavalcante
compõe quadros que são verdadeiras pérolas da nossa memória visual histórica e
afetiva. Seu contributo é inestimável como ilustração imagética de uma
sociabilidade tradicional de fundo, eternizando o ethos de um mundo que foi, ao longo do tempo e cada vez mais
aceleradamente, desmontado e desconfigurado por um verdadeiro “estado de tela”
em que vivemos mergulhados, num oceano de imagens eletrônicas que se sucedem na
velocidade do WhatsApp e que globaliza a nossa percepção e nega às
gerações recentes o desfrute de um outro tempo-lugar que foi aquele das
gerações passadas. Devemos à artista, portanto, e neste particular como a poucos, a fixação definitiva
de cenas cada vez mais
extemporâneas, reinventadas por ela com
uma delicadeza e riqueza raras; cenas que muitas vezes nos explicam ou nos tipificam como povo e
território diferenciado e singular. Não sem razão, o uso excessivo mas não
abusivo das cores, em seu trabalho, vai ao encontro do mesmo mundo que nos
legou os folguedos, as nossas rendas e bordados tão multifacetados. Mas haveria certamente muito mais elementos a
destacar na surpresa estética desta exposição.
À parte a inspiração dos santuários
domésticos ou das formas ovaladas que lembram os antigos retratos emoldurados
de parede, temos especialmente a série com a presença constante da jovem mulher
sem rosto, a Andeja com seu gatinho de estimação, talvez o alter ego da artista. Ela revela-nos a sua hesitação, ou a sua
negação do tempo. Retratando quase
sempre cenas externas, Andeja nunca se afasta de seu entorno de vida: vai à
beira do rio, mas apenas observa a outra margem; olha o interior da capela da
calçada; senta-se num banco e contempla o horizonte; passeia de bicicleta; da
rua fala com uma vizinha pela janela; aguarda à margem da estrada uma condução
que não vem etc. Ela congela o tempo dando a entender que deseja deslocar-se,
mas jamais sabemos para onde e, ao que parece, ela também não sabe. O gato,
animal doméstico por excelência, reticente à mudança de cenário, é o seu melhor
guardião do tempo e do lugar. Tempo recriado por Myri a partir de um imaginário
que sabemos caro ao nosso território e à nossa identidade.
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