Luiz Sávio de Almeida
Realmente não
consigo esquecer e faz tempo que convivi com ele. Era pãozeiro naqueles
pequenos povoados ao derredor de Arapiraca.
É um tipo de gente que desapareceu: balaio de pão na cabeça, o
pano branco limpo e cobrindo a preciosa carga, o cavalete pendurado no braço. Andava com a buzina na mão, gritando Oiá o pão e fazendo o fonfon que não
parava. Dava-se assim com o Dionísio.
Baixo, cabeça grande, meio cambota e bem mais feio do que eu. E um
amarelo que nada tinha a fazer, resolveu ficar de goga com ele, caçoando e
caçoando enquanto ele passava de cabeça erguida com o balaio de pão em cima da
rodilha, ganhando a vida naquele sacrifício de andar pelo redor de mais de
légua por dia, na caça ao vintém ganho.
E aquilo foi
torturando, mexendo nas entranhas; e ficou difícil de ser levado e o tempo começou a
passar em um tic-tac diferente assuntando: as perguntas e o juízo. Dionísio foi
se enchendo de raiva. O
amarelo era alto, forte e dizia as coisas e
ficava rindo, achando graça em como deixava o outro lento e pensativo, com o balaio
de pão na cabeça. Dionísio tinha mãe e o pai havia sumido no meio do mundo, que
nunca foi achado ou encontrado. Vendia pão para sustentar a mãe, pagar o
aluguel do quartinho e comprar o de comer, um naco de ceará, um feijão que
ficava ralo mas dava para sustança na vida.
Dionísio
vendia pão e não podia fazer outra coisa, mas estava se enchendo de raiva, uma
raiva que alimentava a fúria e todo dia ouvia o amarelo grita “Boca de gereba”,
e coisas assim. Procurava cortar
caminho, mas tinha que entrar e sair sempre pelo mesmo lugar e nem precisava
esperar, que sempre pisaria por perto do amarelo. Morre a mãe do Dioníso:
sua dor foi terrível: o mundo mudou e faltou terra a seus pés. Não é que a vida
fosse um vazio: ela era apenas um buraco. E Dionísio passou a andar com uma
quicé, coisa pequena e que ele tinha sem saber para que fim. Ele passou a ficar
com a quicé no bolso da calça. E um dia, sem mesmo pensar, sangrou o amarelo no
pescoço e o danado morreu no meio da poça de sangue e babando o mal que agradaria
a satanás.
Quando eu
conheci o Dionísio, ele já havia saído da cadeia; eu morava na casa da Tia
Lurdes no Farol, pelos lados do Zeiga, Rua Aristeu de Andrade, o poeta que se
suicidou. Bem em frente, morava a Dona
Vitorinha que já foi desta para melhor e faz tempo. Ela nada tem a ver com
a história do Dionísio, o Deus grego a que os romanos chamavam de Baco. Meu tio
conheceu o Dionísio e mesmo sabendo da quicé e do amarelo deu-lhe emprego,
levou para Maceió, deu-lhe um quartinho e pagava o salário. O Deus grego,
depois do praticado e da cadeia, ficou meio avexado do juízo, mas ainda dizia coisa com
coisa e vez em quando cantava: Agora foi que vi, que o crime não compensa!.
Tungava, mas era pouco; um quinado, um queimado, coisas assim.
Ele cantava
sem parar uma música que acho ser de sua autoria e de tanto ouvir, eu jamais
esqueci; também, era moço, uns 23 anos de idade, dava para decorar a tabuada.
Fazia e ao mesmo tempo, não fazia sentido e eu achava bonito a forma como eles
expressava os caminhos da letra e quando terminava, como se fosse um bordão,
sempre dizia: Agora foi que eu vi, que o crime não compensa!
Maria que é que tu tens,
Que vive a reclamar?
Manoé de imaginar
Que vou viver por aqui,
Faz vinte anos que vivo
Sem ver vaqueiro aboiar!
Mas se eu morasse em Goiás,
Perto de uma vacaria...
Namorei uma Maria
Que era bonita demais.
Tem faca para seu pai
Pistola pra seu irmão
Na madeira eu escorrego
Que só foguete no ar.
Anoitece e amanhece,
Tristeza desaparece,
Ai meu Deus se eu pudesse
Não via mamãe chorar!
E agora foi que eu vi
Que o crime não compensa.
Sempre tive
por ele, um sentimento forte de amizade e muitas vezes, tardinha, quando ela
havia acabado de trabalhar e eu de estudar, sentava debaixo do pé de fruta pão
e conhecia parte de seu universo maravilhoso ao ouvi-lo contar suas histórias
de pãozeiro e dos seus acertos com a vida. Nunca, mas nunca mesmo, explicou a
razão do crime não compensar, e nunca perguntei.
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