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domingo, 27 de janeiro de 2019

Crônica diária (27/01/2019). O comício, o papoco e o custo da fome



O comício, o papoco e o custo da fome

Luiz Sávio de Almeida

Quem se meteu em campanha política, sabe que é um treco cansativo  e de muita chateação. Dilton Simões foi candidato a Prefeito e como éramos amigos, chamou e fui para ajudar. Dilton sempre foi uma pessoa honesta e para mim isto era suficiente: honestidade e capacidade. Acho que o adversário principal era o Guilherme Palmeira, não lembro mais. Tudo da campanha funcionava em uma casa que acho tinha a ver com o Jurandir Boia e ficava ali na Fernandes Lima. A seu lado, um restaurante chamado Seandro, onde o Dilton, sem dinheiro, dava nosso jantar em galeto. Nunca jantei tanto galeto na minha vida.
Quando ele me convidou,  eu disse que tinha um preço e que jamais iria trabalhar de graça. Depois dele regatear, combinamos o valor a ser pago a mim: quatro carapebas. Faz é tempo e nunca comi uma carapeba; deve um cardume imenso. Brincadeirinha com o Dilton, pois por várias vezes me chamou para comer as carapebas e eu não fui.
Pois, pelas quatro carapebas enfrentei a parada junto com o primo Luiz Gonzaga, Márcio Pinto e mais alguns de quem não me recordo agora. Era um trabalho intenso e sem dinheiro, mas valia a pena. Para mim, pessoalmente, foi notável a experiência com o cassimicoco na campanha.  Cassimicoco ou mamulengo... Devo confessar que sou apaixonado e lamento ver que vai sumindo.  Pois ele juntava gente e naquele tempo, traficante não mandava.  Lembro-me de que o Zé Costa apoiava a campanha. Apois bem, etc. e tal!
Campanha vai acumulando problemas de toda a ordem, chateação por cima de chateação.  Havia a esperança de ganhar e tome galeto que eu já não aguentava mais. Sustentar uma campanha não é brinquedo e o custo galeto não é nada no orçamento. Jamais foi dado um tostão a quem quer que seja e digo que a nossa briga foi honesta: nada de dinheiro ao eleitor (o que seria crime) e nem a gente que apoiava. Como se costumava dizer, era uma campanha franciscana,  mas aguerrida e o Dilton era um lutador. E fomos andando. Lembrei do Jurandir Boia, grande companheiro nesta jornada.
O Seandro acabou;  era simples,  mas decente e também não era todo dia que a gente comia galeto. Não era uma campanha de raposa,  nem política e nem de frango assado.  Um dia, lá pelo fim da campanha apareceram  uns assuntos para resolver. Dilton me chamou e fomos ao TER. Na entrada eu disse a ele: Cara, o candidato é você. Eu vou me deitar ali naquele banco da praça e dormir. Veja se não me esquece. Le riu e entrou e eu atravessei a rua e no primeiro banco mais ou menos limpo que encontrei, deitei e fui garrar no sono, como dizia a musiquinha.
Assim que deitei, vi uma senhora vindo em minha direção; a roupa era pobre e o andar era cansado. Pendurada no braço,  estava uma bolsa rota, daquelas que antigamente se levava para o mercado. Era de palha. Eu fiquei com pena dela, lembrando-me das milhares que existiam em situação pior. Ela sentou na outra ponta do banco e por sinal de respeito, levantei-me. Ficamos calados: ela com seus problemas e eu com o meu sono. Foi quando algo fantástico aconteceu.
Lá pelos lados da praia estava havendo um comício e era pou-pou e os foguetes não paravam. Ela olhou para mim e defendeu uma das mais brilhantes teses  que vi: Meu filho, com um papoco desses eu comia uma semana!. Olhei para ela, sorri e  entendi.
Posso esquecer esta senhora?

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Crônica diária. (23/01/2019). Educação: lembranças de uma escola em Penedo


O menino desasnado e a escola


Luiz Sávio de Almeida


Comecei a estudar em casa; minha mãe desejava que eu fosse desasnado para  a escola, não fosse cru; deveria saber alguma coisa, para não chegar inteiramente asno. O verbo desasarnar é pesado e vem d’atanho. Então, para a tarefa de me dar um pouco de letras e de tabuada, minha mãe escolheu uma professora gentil que morava a bem dizer vizinha, no Cajueiro Grande, em frente ao Hospital. Chamava-se Maria José e lembro-me perfeitamente do dia em que fui à sua casa pela primeira vez. Era uma calça azul marinho com espécie de suspensório do mesmo pano andando e o dono dela levava uma folha de papel almaço, um tinteiro e uma caneta de pena. Tinha que começar a fazer as coisas sozinho e fui sozinho.
Fui muito bem recebido e ela me ajeitou num canto de uma pequena sala, onde estava a mesa em que deitei tinteiro, caneta e papel almaço. Ela disse que iria fazer um ditado, para ver como eu estava e foi falando e eu escrevendo. Jamais esqueci... Ela leu, sorriu e disse que eu não precisava escrever a palavra vírgula, mas colocar um rabinho. Não sei se foi vergonha ou qualquer coisa que passe por aí. Sei apenas que jamais me esqueci do fato e foi o grande começo de uma dificuldade que carrego comido: a vírgula. Vírgula é muito chata, mas se não fosse ela, a gente desembestava na leitura até chegar no ponto e depois no ponto dos pontos que é o final. Não é fácil colocar a vírgula.
De lá é que a dúvida: para onde levar o menino? Para o Ginásio Diocesano ou para o Gabino Besouro? E terminei indo para o Jegue Doido, segundo Francisco Salles dizia que chamavam o Ginásio à época dirigido pelo Padre Jefferson, que depois, não sei o motivo foi transferido para Arapiraca. Onde acho que tive duas professoras, sendo que lembro o nome de uma delas: Lurdes Cruz.  Era o ritual; vestia a farda, saia de casa sozinho, andava com uma pequena pasta e uma lancheira e nela um copo de refresco e um sanduíche de queijo ou com um pedaço de goiabada cascão ou os dois misturados. Jamais eu soube o que era presunto, mortadela, salame... Talvez até existisse em Penedo.
O sanduíche era comido no recreio que, na verdade, era a correria no campo e o cuidado para não levar uma cama de gato; um ficava de quatro atrás da pessoa e outro vinha pela frente e empurrava, dando-se uma perigosa queda. A gente entrava pela lateral, entregava a caderneta, carimbavam e na saída carimbavam também. A caderneta era a comunicação do Ginásio com as famílias.  Os pais veriam se o filho comparecia e as partes também eram escritas.  Claro que fiquei muitas vezes de castigo e foi ali que começou a minha encrenca com as escolas que frequentei. Não me lembro do nome de qualquer colega da época, mas uns poucos respingos de tempo ficaram.
Lembro-me das aulas de catecismo para a primeira comunhão que eram dadas pelo Padre e de meu entrevero com ele. Dizia que Deus era bom, magnífico e eu perguntei então a razão de nos deixar pecar. Isto ficou na minha cabeça, como as redações que nos mandavam fazer. Colocavam uma figura pendurada perto do quadro negro e a gente descrevia. Houve um problema. Uma das redações era um sapateiro e uma menina e escrevi que o sapateiro estava segurando o sapato daquela forma,  pelo fato da menina ter chulé. O negócio foi reclamado a meu pai mas venci o velho Manoel de Almeida. Como foi uma reclamação também, por conta do exagero de uma professora: ela  começou a dar exemplos de transportes e dizia: como o navio, como o caminhão, como o trem. Eu não me aguentei e perguntei se ela comendo tudo aquilo não iria ter dor de barriga. Foi outra e sempre existiram, outras. A professora inesquecível foi a Lurdes Cruz. Não me parece que era de Penedo; sei apenas que guardo seu nome com carinho e depois perdi todas as notícias.
Era bom voltar para casa e esta volta eu não gostava de fazer pela Rua da Penha; não sei o nome da outra; era a primeira depois da Penha, sem calçamento, e um caminho a bem dizer direto, menos rampa ou quase nenhuma conforme me recordo.  Saía no oitão da bodega do Seu Cazuza, passava pela frente da casa do Dr. Agnelo e entrava em casa.


quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Crônica Diária (24/001/2019).A Rua da Penha, costureiras, modistas e a leitura M. Deli




A Rua da Penha, costureiras, modistas e a leitura M. Deli

Luiz Sávio de Almeida


              Naquele meu tempo,  a costura era algo importante, pois não existia esta facilidade de hoje com as confecções. Então costurar era um verbo obrigatoriamente conjugado em quase todas as casas e aquelas que podiam tinham o quarto de costura. Muita casadas eram prendadas e se entretiam na costura, mas o seu forte era bordar e, realmente, fazia coisas maravilhosas. Primeiro ela fazia o risco e o transferia para o pano, a partir de um papel carbono que ela comprava na própria  Penedo. Depois era bordar toalhas maravilhosas, com os pés ritmando o pedal da velha máquina Singer, que ainda hoje guardo com cuidado. Foi comprada quando ela morava em Quebrangulo, lá pelos anos trinta. Ela colocava o vestido preso no bastidor, pedalava e cantava. Tenho uma toalha que ela bordou para a mesa do dia de Natal. É um verdadeiro encantamento.
               Costureira ruim era a que fazia cu de pinto; costureira de primeira chegava a ser chamada de modista, era fina e somente fazia roupas importantes e de quem podia pagar mais. Era a roupa de formatura, a roupa do casamento, a das festas. Esqueço o nome dela, mas na própria Rua da Penha, no correr de cima, havia uma costureira ou modista de fama. Foi quem fez a roupa da minha irmã na formatura de ginásio de minha irmã, roupa falada lá em casa, pois era solenidade de primeira. Isso no Colégio das freiras, na entrada do Cajueiro Grande.  O tecido se comprava mesmo em Penedo e um deles, gente de família não gostava de usar pois,  curiosamente, era chamado de puta ligeira, cheio de bolinhas. A razão eu não sei, mas o puta ligeira chamava atenção.
               Minha avô Dondon na Capela, sustentou as filhas com a máquina de costura e a arte deve ter passado para as filhas, dentre ela a minha mãe que mantinha uma coleção de Jornal das Moças, onde tirava ideias para  vestidos e bordados.  Ele existiu de 1914 as 1868, mas somente lembro dele em nossa casa de Penedo. Mamãe colecionava e encadernava na casa do Seu Joãozinho, quase vizinho e que trabalhava, também em uma farmácia no comércio. Uma outra leitura de minha mãe, era uma coleção de capa verde e publicada pela Editora Nacional. Eu pegava e devolvia livros para ela, na Biblioteca que existia – se não me engano – na Ordem Terceira.  De tanto ver lá em casa, decorei o nome de um escritor chamado M. Dely, onde vidas de lords e o meloso europeu chegava ao Brasil através de Monteiro Lobato e em Penedo através de não-sei-quem.
M. Dely ficou em minha cabeça sempre em capa verde. Era o pseudônimo de dois irmãos franceses; Monteiro Lobato criou a Biblioteca das Moças e tome de M. Deli com seus amores, sofrimentos, o tipo do que poderia ser considerado um folhetim fácil. Deveria vender bem e a Biblioteca das Moças existiu por uns trinta anos. Veja-se a recorrência da palavra Moça. Jornal das Moças, Bibliotecas das ditas cujas... E era assim que seguia a vida de minha mãe: costurava, lia M. Dely, não perdia a soirée dos domingos e me dava purgante de óleo de rícino.

Crônica diária (23/01/2019). O Beco da Preguiça na vetusta cidade de Penedo: brincadeiras e outros borogodos

 O Beco da Preguiça na vetusta cidade de Penedo: brincadeiras e outros borogodos

Luiz Sávio de Almeida

O Beco da Preguiça é tão grande quanto pode ser para quem tinha sete anos de idade: uma ladeira imensa e a mais importante de minha vida; a segunda, e por razão diferente, era a que vai do Ginásio Diocesano ao Gabino Besouro, obrigando à curva para entrar na vetusta Rua da Penha.  Quem – acho que deveria ser quens –não devia gostar muito, eram as senhoras que moravam em um sobrado muito bonito, acompanhado pela calçada do Beco em todo seu oitão, justamente o ponto das brincadeiras.  Finissimamente educadas, elas não reclamavam, pelo que eu me lembre.  Aquela calçada como tantas outras era extensão da infância em Penedo: existiam os meninos de calçada.

Na calçada se conversava de tudo e uma das brincadeiras era a da coleção e troca de notas de cigarro, catadas na rua. Cada embalagem de cigarro tinha um determinado valor  e sinceramente, não sei o que verdadeiramente determinava esta espécie de câmbio inusitado. Sei que as de menor valor correspondia aos cigarros mais baratos e mais fumados; quanto mais rara a nota nas redondezas, mais alto o seu valor e é por isto que me lembro do que se fumava: Astória com ponteira ou não, Continental, Rodeio e o mais comum era tudo o que vinha da Souza Cruz. Algumas fábricas do sul, traziam cigarros como o Lincoln e eram caros, mas o mais caro mesmo era cigarro americano, sempre aparecendo em um vez em quando, Camel e Chesterfield. Foi tão grande a minha intimidade com o Camel e Chesterfield que terminei por começar fumando, nos Estados Unidos o Chester e depois me fixei no Camelo. Eu guardava as notas em carteiras que fazia de papelão e grude; na calçada era a troca pois quem tinha muitas de uma marca procurava passar para a frente. Fico em dúvida se ainda existia o Iolanda: aposto que sim. O Astória do meu tempo, vinha em embalagem amarela e do Continental era azulzinha, com um mapa.

E era assim que a Bolsa Valores da Rua da Penha funcionava, com muitos pregões feitos no Beco da Preguiça. Guardei, por muito tempo, as embalagens até que nas mudanças da família, perdi. Lamento mesmo; seria bom e bonito ficar vendo e recordando.  Tentei recuperar, falando com a Souza Cruz, mas ela não me deu a mínima bola.  Jamais a Souza Cruz iria se incomodar com um tempo de uma criança. Isto não cabe em carteira de cigarro; cabia o meu pulmão que fui muito fumado.
Posso esquecer a Souza Cruz?

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O maravilhoso das ruas que se encantam na memória. Rua da Penha em Penedo, Alagoas


O maravilhoso das ruas que se encantam na memória. Rua da Penha em Penedo, Alagoas



Luiz Sávio de Almeida




A minha geografia pessoal de Penedo tem de ser absolutamente diferente da geografia de outras pessoas, na medida em que ela existe recordando e atribuindo sentimentos e significados. Os lugares são marcos de vida e busca-los no passado, além de ser um exercício maravilhoso, é uma procura de sentido de vida. Neste entendimento desta geografia que atribui significações pessoais a lugares, a gente toma posse de um pedaço da cidade. Assim, a Rua da Penha é uma multiplicidade de situações  e de circunstâncias que somente a consegue inventar e reinventar quem a viveu de uma determinada forma e modo. Eu a vivi ainda usando tamanco de madeira, uma indicação mais distante de tempo que consigo para ela e sua intensidade localiza-se em um pequeno pedaço que vai do Gabino Besouro até o Beco da Preguiça; para cima, em direção à Praça, ela não é propriamente a minha rua, sendo rarefeita e apenas lembrada em situações particulares como almas e passarinhos. Seu limite para quem sobe    – e à direita  – é a bodega do Seu Cazuza e, pela esquerda, a imponência do Beco da Preguiça, aquela ligação com a Rosário Estreita, conforme se dizia por existir a Rosário Larga.
Este é o universo privilegiado de minha Cidade de Penedo, um quase nada dentro daquele território urbano cheio de sobrados e belissimamente repassado por Caroatá, pelo idos do último quarto do século XIX.  Por ali, existe um tempo enganchado e que é o tempo de minha infância e talvez por isto, eu jamais consiga esquece-la  e a carrego em mim; vezes ela está quieta e vezes algo a futuca e então ela volta de alguma forma. E o interessante é que as pessoas das quais me recordo, não aparecem destacadas das relações que tiveram comigo, talvez querendo indicar que são mais eu-mesmo do que elas. É como se eu as utilizasse para lembrar-me de mim e como se fosse impossível ao tempo fugir da marcação das individualidades.  Daí, a mesma rua serem muitas.
Nela, eu tenho o meu próprio patrimônio histórico e recheado, inclusive, de monumentos.  Posso dizê-los: são poucos e basta descer a rua e eles aparecem; subindo, eles não existem, salvo no que vou chamar de minha primeira Penedo.  A minha primeira Penedo foi demarcada pelo Cajueiro Grande; a Rua da Penha é a minha segunda Penedo.  Apois, o primeiro monumento histórico era a Bodega do Seu Cazuza, depois a casa da Dona América, onde morou, também, depois que Dona América ficou viúva,  Dona Virgínia e Seu Pontes, e vai que aparece a casa de Seu Joãozinho; em seguida a de uma menina  de quem não lembro o nome e a quem jamais esqueci, parecendo que a mãe era costureira e vinda da Ilha das Flores. Finalmente, a casa do pai da Dona América e a majestosa Igreja da Penha. Depois – e muito depois, depois mesmo – vinha a casa onde vi o defunto e já estamos vizinhos ao Grupo Escolar Gabino Besouro, ponto de entrada em minha Penha e menos importante do que os pontos de saída que eram a  bodega de seu Cazuza e o Beco da Preguiça.
Era uma rua poética? Posso dizer que sim; jamais a recordo sentindo algum pesar, algum peso puxando de banda e quem sabe se é exatamente por isto, que a seguro em mim como se fosse um saboroso sapoti?  Ela virou poesia e tenho a clara sensação, agora, de que as ruas são escritas, textos e como tal devem ser lidas.  Eu sempre aprendi muito com meu pai e com minha mãe; eram dois aprendizados distintos; com minha mãe eram mais dicas humanas. Uma vez eu estava com um problema sério e fui conversar com ela. Depois de me ouvir, veio a sugestão: “Meu filho, talvez você precise ser feliz com o que é possível!”. Acho que a minha Rua da Penha foi uma das minhas possibilidades.


domingo, 20 de janeiro de 2019

Crônica cotidiana (21/01/2019). As ruas e seus significados


Ao estilo das velhas cadernetas de lembranças: a molecoreba da Rua da Penha no Penedo

Luiz Sávio de Almeida


               E o que posso fazer com a Rua da Penha se ela não me larga, como se tivesse grudado na alma e eu consigo ver de onde e por onde venho a partir dela? Um amigo irmão camarada, como  o do Roberto Carlos e o de Suruagy/Guilherme,  para me fustigar e dizer que eu era um ser paroquial, gritava que eu via o mundo a partir da Capela das Alagoas e portanto eu seria mais um bestão provinciano. Era realmente um irmão que faleceu, de quem sinto saudade até do direitismo dele; suas cinzas foram espalhadas na barra de São Miguel e ainda navegam pelos oceanos, dando a ele multiplicidade e uma invulgar capacidade de tri-ubiquidade. Trata-se de Gildo Marçal Brandão de quem sinto imensa falta.
               Eu fui criado a  bem dizer solto, no meio da rua, correndo desembestado, jogando pelada, jogando barra-bandeira, brincando de mocinho e bandido, embora tivesse em casa um horário rígido. Acordar cedo, tomar o café, fazer o dever da escola, lanchar e brincar. Almoçar, vestir a farda, descer para o Colégio Diocesano, estar nas aulas, voltar e brincar. Depois do jantar podia estar na rua, mas nove horas já estava deitando na cama Patente  no meu quarto, mas, como eu gostava, vez em quando era na cama de vento que eu achava o máximo: aquela espécie de cavalete, a lona pregada. A cama de vento sempre estava ali à disposição e era para onde eu ia quando algum parente chegava lá em casa e ficava no meu quarto.
               Nunca vi acidente, nunca vi grandes encrencas e nem atentado, embora que, vez em quando, saindo do meio do nada, poderia dar umas porradas, especialmente quando era matéria de algum provocador que cuspia no chão e dizia: aqui é sua mãe, ali é a sua: quero ver quem pisa na mãe do outro.  Aí, pegava fogo, mas fora isto, somente as brigas virtuais de bandido contra mocinho. Na verdade e para este traço que escrevo, o que estou chamando de Rua da Penha era um pedaço que ia do Beco da Preguiça, no confronto com a bodega do seu Cazuza, até a Igreja da Penha, bem, abaixo, e na frente de um imenso casarão que foi ao chão, faz muito tempo.  No fundo, são dali que saem as minhas mais fortes recordações e elas deixam claras as peladas, a barra-bandeira, como ficam, também, os olhos de Nossa Senhora da Penha, pintada no teto da Igreja e que ficava nos olhando, fôssemos para onde fôssemos dentro da pequena Igreja.
               A gente seleciona pedaços do mundo para guardar e este pedaço que falei ainda se movimenta em mim, como se eu buscasse minha infância por ter gostado, imensamente do que vivi. Era uma rua estreita, mas tinha um quê de vida àquela época e de maravilha atualmente. Por isto, eu sempre me recordo,  quando penso na Rua da Penha, de uma música de Caetano que se espanta e vê uma coisa tão maravilhosa como a pena do pavão de Christina e tem de dizer: Vixe, Maria Mãe de Deus!
               Talvez eu esteja exagerando, mas nem tanto. A rua tinha menino e muitos chegavam da redondeza; chato era quando minha mãe botava a cabeça na porta; nem precisava dizer nada. Quando a brincadeira era longe, lá para perto da Igreja, ela chegava discreta e de mansinho; eu via e ela voltava abraçada a mim. Aí, era para a cama de vento ou a cama Patente, depois de lavar os pés,  escovar os dentes e pedir a benção. Era deitar e rezar a oração do Anjo da Guarda a quem Deus me confiou e que minha mãe fazia questão que eu rezasse depois de uma Ave Maria e um Pai Nosso.
Meu Anjo da Guarda, meu zeloso protetor que a ti me confiou a Piedade Divina...




Crônica diária (20/01/2019). Calunga quiéquitu sôis?



Ao estilo das velhas cadernetas de lembranças: calunga quiéquitu sôis?


Luiz Sávio de Almeida

               
Penedo tinha duas grandes tiras de ligação entre o rio e o norte do Estado. Ela foi uma cidade que se pensou em grande parte, em função de onde estava a sua grande riqueza que era as águas do rio de São Francisco. Depois, ela virou passagem e, então, em si, era também um caminho para o norte e os caminhões foram fazendo o tráfego. Muitos deles ou todos, como se dizia então, chorando na rampa para vencer as ladeiras.  Na minha cabeça ficou o Mark, um  caminhão que mesmo lá pela frente do hospital no Cajueiro Grande, passava meio pesadão. Um caminhão daquerle tempo era  muito diferente dos que existem hoje: eram caminhões xeretas, da venta grande.
               Fico pensando como subiam; Penedo é também uma rampa. Existe a Penedo de cima e a Penedo de baixo. Entre elas, somente ladeira. Teriam os nossos caminhões de virem – pena que o Melro foi embora e não pode me corrigir – subindo ali pelos lados do Diocesano, pegando o pesado que era a ladeirona até o Gabino Besouro e irem quase em reta subindo pela Rua da Penha, onde iriam bater na Praça e pegarem a larga subida  do Cajueiro Grande. Era por isto, que caminhão em Penedo teria de chorar na rampa, expressão maravilhosa e que lembra a necessidade de andar em marcha de força, a primeira ligada e jamais ter a aventura de uma descida na banguela.
              
Normalmente o caminhão passava com um calunga  em cima da carga ou então – quem sabe? –  era uma carona que o motorista não deu lugar na boleia. Na verdade, ninguém àquela época chamaria de carona: era bigu.  Não me lembro de ter visto asfalto por Alagoas naquele tempo;  era tudo no barro e chegar a Maceió, por exemplo, era uma grande aventura, rumando para Junqueiro, São Miguel dos Campos e o conforto que dava a corrente do Pilar, indicando que em breve estaríamos rodando no asfalto que vinha do aeroporto. Era portanto, viagem cheia de catabiu;  um caminho cheio de costela, camaleão, boca de pilão, lagoa, poça, lama e o escambau;  tudo isto somente poderia dar em catabiu que a orgia léxica de alguns diz vir de cut a little bit. Dei alguns nomes de “acidentes” e mostro como era diversificada a estrada, com o motorista tendo de saber identificar a todos, para vencer a distância. Bigu,  catabiu e escambau são palavras que sumiram. 
Um delegado – de bom humor e da Polícia Federal  – lançou uma Operação Catabiu para ver os trecos da Rodovia 104; se fosse para ver tudo de Alagoas, na certa o mesmo delegado lançaria a  Operação Escambau,  palavra que – vejam só  – outro potente etimólogo diz ter vindo de whisk and bowl. Como advertência, devo dizer que no futuro existirá a palavra tanquiubeibi, que vira do inglês falado na China. Meu amigo, se você não está com pressa, diga 100 vezes e depressa cut a little bit: vai cansar e dar agonia nos lábios: eu já experimentei. Diga também wisk and bowl e sinta quanta careta você faz. Quando o escambau é grande, sempre ouvi dizer que era  o escambau a quatro. Aí sim, é que era escambau.  Lembrei agora de um primo que não se contentava com etcetera e sempre finalizava seus assuntos compridos dizendo etcetera e tal. Morreu o meu primo e que Deus o tenha, etcetera e tal.
Mais pois bem, ainda não cheguei no assunto do título: calunga quiéquitu sôis? Hoje sinto que era um desrespeito, embora não pensado, não desejado, valendo apenas a brincadeira, o engraçado da resposta. Quem inventou isto, certamente não tinha o que fazer e era um baita de um maloqueiro. O caminhão passava no aperto da rampa e a gente gritava: Calunga quiéquitu sôis? A resposta vinha direta: “Fila da puta!” Isto e aquilo etcetera e tal. E se o calunga pulasse?


sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Crônica diária (19/01/2019). Ted Ward, o Professor da Michigan State Univrsity


 Ted Ward: o Professor  da  Michigan State University

Luiz Sávio de Almeida

Devo imensamente a Ted Warren Ward, meu orientador na Michigan State University; conversamos  quando de uma de suas vindas ao Brasil e ela, requisitadíssimo, aceitou ser meu orientador.  Praticamente, ele me recebeu na Michigan State University e me deu assistência bem maior do que simples relação acadêmica. Deu-me acesso à sua residência onde convivi com sua família e com sua esposa, uma pessoa humana de última geração. E com quem fui à Igreja Batista algumas vezes lá em East Lansing.  A fama não lhe roubou a humanidade e nem a capacidade de dialogar, tendo uma grande atuação internacional.  Meu interesse com ele era a chamada non formal education e na sua grande atividade de pesquisador em curriculum.
Eu tinha acesso à seu escritório sem muito protocolo e muitas vezes saímos para passear nos entornos de East Lansing, com sua esposa sempre amável e brilhante música. Ele deixou a Michigan State em 1985 como Professor Emeritus  do College of Education e foi para a Trinity  Evangelical Divinity School, dando continuidade a seus interesses em ligar a discussão teológica à educação. Lembro-me perfeitamente do dia em que me disse estar  com altas taxas de diabete. Foi ela que ajudou a que morresse junto com complicação renal, isto em 2016.  Talvez a passagem mais íntima de nossa amizade deu-se depois do primeiro termo que passei na Universidade. Um termo difícil de adaptação cultural, da pressão da língua diferente, era como se estudar fosse algo irrealizável.  Foi quando ele mandou me chamar e deu-se um diálogo que somente vou narrar pela força da saudade e pelo que tanto representou em minha vida futura.
Mandou dizer que precisava falar comigo e eu julguei que era a minha dispensa, no que, sem dúvida, seria muito educado ao dá-la.  Fui com uma certa ansiedade. Entrei em seu pequeno escritório cheio de livros, papeis e uma cadeira ao lado de sua escrivaninha,  Sentei. Era a sentença da volta, arrumar a trouxa e pegar um Ita para o Brasil, aportando novamente nas belas praias de Maceió. Ele sorriu, parou de escrever olhou para mim, fez o gesto de quem contava com os dedos e disse: “Estou há 11 anos nesta Universidade e (contou nos dedos) somente disse o que vou falar a você, a umas dez pessoas. Eu sou altamente requisitado; muita gente espera pela minha orientação, mas sou eu quem está lhe dizendo: quero ser seu orientador!”.  Eu baixei a cabeça: era o contrário do que eu esperava. E ele continuou: “Mas você tem que ter humildade e jamais utilizar o que vai aprender comigo para ter poder. Pelo contrário, você vai ter de servir a seu povo e somente a ele!”. Eu baixei a cabeça. E ele arrematou: “Pense e me diga se aceita meu convite e ao voltar me peça,  para saber do início do caminho e por onde ele sempre começa!”.
Voltou a escrever e fui embora tomar um café, com a sensação de que havia estrada a percorrer e que talvez eu me demorasse por lá, mas um bicho roía a minha cabeça: eu sabia que voltaria, que havia papagaio,  coqueiro, lagoa e praia. Sabia que a tentação seria grande, mas eu jamais deixaria a terrinha e  nem jamais deixaria de estar ao lado da velhice de meus pais e nem de estar com os meus.
Aquela conversa com Ted foi decisiva e ela foi farol para o resto da vida.
Posso esquecer Ted Ward?

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Crônica diária (18/01/2019). O caso do Pinheiro: uma tragédia acontecida em Maceió


Pinheiro: Brasken, Prefeitura e Igreja Batista


Luiz Sávio de Almeida

Os primeiros sinais de tudo começaram a acontecer em torno de dez anos. E tudo veio andando, até que em março do ano passado as coisas se apresentaram de modo mais forte e foi, aí, que começou o que vou chamar de clássica tragédia urbana.  As rachaduras que aconteceram são humanas, bem mais do que físicas e atingem profundamente vidas e vidas que jamais esperaram estar numa situação deste tipo.  Pinheiro é um bairro cuja limitação a leste está na Fernandes Lima e se avizinha da Gruta de Lurdes, Farol, Pitanguinha, Bebedouro e Chá da Jaqueira. É um imenso território de nossa humanidade na cidade, onde as sombras da incerteza sobre o futuro se acumulam, tornando o imponderável como presente na atualização que o tempo realiza a cada segundo. E esta é a força tragédia: fazer com que se espere.
Não há como controlar e se tiver de acontecer, acontece mesmo. É uma cidade que tem de se render à inexistência de controle sobre o evento; tudo pode dar-se e na escala que desejar.  Neste sentido, somos uma impotência: quem vai dizer à terra que não se movimente  e que não procure sua acomodação? Ninguém.  Neste processo, existem dois fatores que claramente convergem sobre o problema: a ação natural e a ação humana. Estamos dependendo de informes de pesquisa, mas ela nos dará informações sobre causas e não sobre controle. Então, o dito está dito: tudo pode acontecer e não se sabe quando e como.
Uma grande empresa volta a ficar na berlinda urbana desta Maceió pecaminosa, como  os antigos profetas encontraram Jerusalém; antes foi o que se tornou conhecido como o gás que ela emanava. Falava-se à  boca larga os efeitos que se davam naquela região do Trapiche e outros pedaços. Agora se fala, também à boca larga, que tudo tem a ver com suas perfurações, no que ela responde que injeta água.  Eu como cidadão, gostaria imensamente que ela explicasse a razão de nunca poder ter responsabilidade neste processo. Acho que ela deve este tipo de fala pública e rápido.  Jamais ela foi responsabilizada oficialmente por isto,  mas a conversa circula e não é boato de quem não tem o que fazer:  é uma legítima especulação de quem vive o problema e somos todos nós.  Deixo claro, que jamais eu estaria acusando uma empresa de ter ocasionado isto. Não tenho elemento e nem dados para tanto: acho apenas oportuno que ela faça o que sugeri.

Apois bem! Temos que começar em um futuro sem seus eventos e isto é extremamente complicado, mas sinceramente eu confio na Defesa Civil do Município, a meu ver, a principal responsável. A ela cabe a liderança de viver possibilidades de futuro e receber a ajuda obrigatória de todos nós. Quem explorar econômica ou politicamente o que vamos chamar de a crise do Pinheiro, deve ser execrado pela opinião pública. Sei que alguém jamais fará isto, mas se por hipótese fizer,  merecerá morar nas profundezas do buraco que por ventura se abrir.  Na tragédia, não se tem culpados,  mas estes exploradores serão merecedores não de cadeia, mas das antigas e inquisitoriais masmorras.
Fico inteiramente à disposição da Defesa Civil da Prefeitura de Maceió, embora nem mais caneta eu tenha a oferecer: usa-se teclado. Mas acho que ela deveria fazer um histórico de todo o processo e o estado de conhecimento sobre ele e divulgar.  A população agradeceria ouvir da autoridade constituída, o que vem sendo feito e ocorrendo.  Seria importante se neste esclarecimento participasse a Defesa Civil do E
stado de Alagoas e a própria organização federal que vem cuidando da pesquisa.
Ao bom amigo pastor Wellington da Igreja Batista do Pinheiro, peço humildemente, que, com sua congregação, ore por todos aqueles que estarão e estão sofrendo este abalo cívico. Tomo a  liberdade, meu bom pastor, de lhe sugerir um domingo especial em sua Igreja, para onde eu iria, sem dúvida, receber a sua honrada benção.

Antecipei a crônica.


Crônica diária. Arthur Azvedo, teatro e escravo




Um pouco em torno de Arthur de Azevedo (II):  os escravos e o teatro

Luiz Sávio de Almeida


Eu gosto do teatro do Arthur de Azevedo; ele sabe perfeitamente chegar a seu  cotidiano, mesclando um fino senso de humor aos tempores e mores. No entanto, uma das suas peças  chama a minha atenção e me prende a seu texto, como se houvesse um grude espiritual. É de 1882 e seu título: O Escravocrata, peça em três atos e com um grande número de personagens, como seria do tom da época e submetido ao  Conservatório Dramático Brasileiro, entidade criada em 1843 e que funcionava como censura aos textos teatrais. O título original era  A Família Salazar. Não recebeu placet.  Nem mesmo, no veredito, foi incluída qualquer nota de esclarecimento sobre a negativa e, então, Arthur de Azevedo chega à conclusão de que somente poderia ter sido um julgamento moral, conforme seria costume daquela instituição. À época desta encrenca de Arthur de Azevedo, houve reforma e, também, o,  Conservatório datava de 1871 e vai acabar em 1897. Apesar da mudança do caráter privado para o público, Arthur Azevedo o acusava de manter seus juízos moralistas.
Desafiando a autoridade, Arthur Azevedo o publica para que leitores formassem juízo e adianta quais seriam os pontos negativos a serem tocados, do pomto de vista do Conservatório: imoralidade e inverosimilhança. O tema central é o amor de um escravo por sua iaiá e ela termina por ficar grávida com o filho sendo criado a bem dizer como se fosse legítimo; algo inesperado, revela o segredo e a violência assume o curso do drama. Onde estaria o imoral, pergunta o autor? Diz que amor entre escravo e senhora era coisa banal, comum; aduz que todo mundo conhece um caso e, então, vem uma bela discussão sobre censura, teatro e vida. É aqui, que parece tudo se tornar a conversa do mesmo tronco, quando a censura aparece para regular o que seria legítimo para uma sociedade, empestando-a com seus valores excludentes.
E então se opõe o anseio de controle da censura e a oportunidade do texto teatral. Diz então o Arthur de Azevedo:
“’SERIA MUITO BOM QUE TODAS AS MULHERES CASADAS FOSSEM FIÉIS AOS SEUS MARIDOS, HONESTAS, AJUIZADAS, E QUE OS ADULTÉRIOS INFAMANTES NÃO PASSASSEM DE FANTASIAS PERVERSAS DE DRAMATURGOS ATRABILIÁRIOS; MAS INFELIZMENTE ASSIM NÃO SUCEDE, E O BÍPEDE IMPLUME COMETE TODOS OS DIAS MONSTRUOSIDADES QUE NÃO PODEM DEIXAR DE SER A NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – O TEATRO”.
É muito importante, onde ele coloca o tribunal de justiça: na arte. E ele atinge a questão no âmago: trata-se de esconder a questão escravocrata; era ela a incomodar ao Conservatório e se ela não estivesse na peça, ainda segundo o Arthur,  o texto perderia sentido e nem ele, o autor, não estaria colaborando com a derrocada do que chama de “a fortaleza negra da escravidão”.
Sem dúvida eu penso assim, quando escrevo minhas tolices para teatro: o mundo deve ser julgado aqui, com o rigor dos olhos e ouvidos deste imenso país que é chamado de plateia e tudo que faço, prestando ou não, procura ir contra “a fortaleza da negra escravidão”. Não fosse desta forma, para que falar em escravo? Para que a velocidade no texto, como se tudo estivesse urgente, demasiadamente urgente? Foi assim, desde o primeiro dia em que comecei e será assim no dia em que terminarei: um solene julgamento como se deu, por exemplo, em A Farinhada.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Crônica diária. Se pensar resolvesse...


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Dona Maria da Reitoria
Luiz Sávio de Almeida

Faz muito tempo, já não me lembro quando, como cantava Carlos Galhardo, tenorizando a  pequenina cruz do seu rosário. Eu trabalhava, parte do tempo , na Reitoria ali na Praça Sinimbu e foi lá que conheci uma pessoa inesquecível. Já deve estar morta e mais do que enterrada, pois  era puxada na idade àquela época. Ela trabalhava em serviços gerais e fazia limpeza, mas tomava uma cachaça danada. Era negra, magrinha e os cabelos mais do que salpicados do branco.
Eu não sei como e quando começou, mas Dona  e eu passamos a ficar de papo e  sempre eu a esperava. Ela somente aparecia para conversar, quando estava tungada e aí  sentava na frente de minha escrivaninha e abria o verbo, vez em quando trazendo alguma coisa para eu comer. No mais, era amendoim torrado embrulhado em papel de jornal; às vezes eu ficava um pouco constrangido por conta das gaitadas que ela soltava: era repartição.
No entanto, eu sentia a sua falta, tanto por gostar dela quanto pelo divertido que era. Nunca avancei quanto à sua vida. Não sabia se era casada, se tinha filho,  se amava... Minha relação era pequena no sentido do espaço que tínhamos e grande no prazer de estar juntos. Ela vinha  no segredo que há em se procurar o destino. Nunca Dona  chegou de cuca limpa; era sempre carregada. Existe pessoa que entra na sua vida e não sai e Dona  foi mais um acaso bom.  Aprendi muito com ela, com seu modo simples de dar suas gaitadas, com as coisas que ela achava graça e com a partilha que  fazia das coisas que comia.
Um dia, Dona  não apareceu e senti sua falta. O tempo foi passando e nada; decidi procura-la. Será que alguma coisa havia acontecido e fui na porta e olhei para a praça e nada da magra figura daquela senhora. Entrei... Onde encontra-la? E foi quando a vi no pátio, encostada em uma coluna, com rosto triste. Aí eu me aproximei e vi que estava sóbria. Ela olhou séria para mim e eu disse: Pensando na vida, Dona?  A resposta foi desconcertante: Meu filho, se pensar resolvesse, eu até que pensava!
Vi  que ela desejava ficar só; eu não cabia naquele momento de sua vida e voltei para minha sala. Sentei e nada consegui fazer, pensando em como a vida pode levar à situações tão intrincadas e tão fortes, que nem pensar em solução é possível. E a gente realmente encontra isto pela frente, ao longo da vida. Dona Maria me ensinava que às vezes a gente tem de se render às agonias que o tempo nos traz e chega-se a viver situação do tipo que ela vivia: pensar não adiantava nada. Não tinha direito e não tive vontade de perguntar se poderia ajudar. Estava visto que não e que tudo já estava resolvido por ser impossível de resolver. Minha mãe dizia: O que não tem remédio, remediado está. Adoro este verbo e seu passado.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

ETEVALDO AMORIM - A CADEIA PÚBLICA DE PÃO DE AÇÚCAR

A CADEIA PÚBLICA DE PÃO DE AÇÚCAR

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO BLOG DO ETEVALDO

Por Etevaldo Amorim

A Cadeia, tendo ao lado casebres sendo invadidos pelas
 águas do rio São Francisco, na Grande Cheia de 1919.
Na extremidade Oeste da Av. Bráulio Cavalcante, ocupando quase toda a largura do mais importante logradouro da histórica cidade, ainda se conserva, firme e inabalável, um dos seus mais antigos prédios: a Cadeia Pública de Pão de Açúcar.
A sua história tem início durante a Seca de 1877. A população de Pão de Açúcar padecia sob esse terrível flagelo, a que as populações nordestinas ainda hoje são submetidas.
Para mitigar os efeitos dessa catástrofe, e para socorrer também os imigrantes de vários pontos do sertão dos Estados limítrofes, o Juiz de Direito Dr. Alfredo Montezuma de Oliveira[i] conseguiu, junto ao Governo, recursos para abrir frentes de trabalho, ocorrendo-lhe empregá-los na construção desse prédio público. Ele era Presidente da Comissão de Socorros Públicos em favor das vítimas da Sêca.
Pão de Açúcar, 1875. Local onde seria construída a cadeia,
dois anos depois. Foto: Marc Ferrez. Disponível em: Fundação
Jean Paul Getty.

Com a fachada voltada para a extensa avenida, dando fundos para os lados da Lagoa da Porta (e, mais além, o Cavalete), foi assentada em local estratégico, como a indicar o exato ponto até onde a prudência recomendaria construir, ante o perigo das enchentes.
Sua construção foi iniciada no dia 27 de novembro de 1877, conforme notícia do jornal O Pão D’ Assucar, edição de 2 de dezembro daquele ano:
Cadeia. No dia 28 do passado, principiou-se a abrir os alicerces do edifício que há de servir de cadeia e Casa de Câmara desta Cidade.
A Comissão de Socorros Públicos empreendeu esta obra, e vai executa-la, para ter em que se ocuparem os emigrantes, a fim de incutir-lhes amor ao trabalho e livrá-los da ociosidade que sempre traz vícios.
Já tivemos ocasião de ver a planta levantada pelo Sr. Dr. Juiz de Direito Alfredo Montezuma de d’Oliveira; é uma obra magnífica. Oxalá que a concluam”.
O jornal O Monitor, BA, de 19 de fevereiro de 1878, reproduzindo notícia d’ O Pão de Assúcar
Continua em serviço a obra da cadeia, que já vai bem adiantada, trabalhando diariamente 100 operários, entre pedreiros e serventes.”
“Mesmo assim, impossível é satisfazer a todos os reclamos dos que querem e precisam trabalhar para ganhar o pão cotidiano, pelo que a Comissão vem fornecendo aos que não trabalham gêneros alimentícios”.
As notícias dão conta de que o projeto contemplava a construção de um prédio que servisse de Cadeia e Casa da Câmara. A Câmara, que tinha também funções executivas, funcionava no sobrado da Rua da Praia (hoje Av. Ferreira de Novaes), cedido pelo Major João Machado de Novaes Mello, o “Barão de Piaçabuçu”.
A obra, entretanto, não passou dos alicerces. Já em 1881, em documento encaminhado à Biblioteca Nacional, a Câmara Municipal dava conta de que a mesma se achava em construção, lamentando que “tão útil ideia não tenha sido, até hoje, louvavelmente aproveitada pelos poderes públicos, levando a cabo tão instante melhoramento”.[ii]
Em Relatório apresentado à Assembleia Provincial, em 16 de abril de 1882, o Presidente Dr. José Barbosa Torres, registra que, para a cadeia de Pão de Açúcar, “há um projeto que peca por exagerado; seria conveniente que se fizesse um plano mais modesto”.
Talvez por ser o projeto “exagerado”, os recursos não foram suficientes senão para a construção dos alicerces. Sobrevindo nova estiagem, quando o Regime já era República e sob o Governo do Coronel Pedro Paulino da Fonseca, em 1891, novos recursos foram alocados:
Paralisadas por muito tempo, as obras dessa cadeia, quando na vigência da República, sobreveio nova seca, tiveram elas, no governo do Cel. Pedro Paulino da Fonseca, o pequeno impulso que lhes poderia provir da insignificante verba de Rs 2.000$000 destina por aquele governador a atenuar o tremendo infortúnio coletivo.” (MORENO BRANDÃO – In Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano – Vol. IX, Ano 52 – 1924).
Passados 34 anos do seu início, a obra precisava ser concluída. E, para levar a cabo esse empreendimento, concorram decisivamente os esforços do então Senador Estadual Cel. Luiz José da Silva Mello[iii], político de grande influência àquela época.
O Cel. Luiz José da Silva Mello.
O jornal A Ideia, em edição de 2 de julho de 1911, em crônica de Hypólito de Souza, noticia a recepção feita ao Cel. Luiz José, no dia 24 de junho, quando de sua chegada de Maceió, ocasião em que foi dada a feliz notícia de que seria retomada a construção da cadeia, pois já se achava empreitada por 7:000$000 (7 contos de réis). Achava-se à frente do Governo do Estado o Cel. Macário das Chagas Rocha Lessa (12/06/1909-12/06/1912).
 O mesmo e importante semanário pão-de-açucarense, dirigido por Álvaro Machado, em sua edição do dia 23 de julho daquele ano, publicou outra crônica sob o título ESCOLAS! AÇUCDES! ESTRADAS”. Em tom satírico, expressa a opinião que se tinha a respeito da necessidade da Cadeia, sobretudo ao considerar outras carências, mais urgentes sob todos os aspectos: