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quinta-feira, 31 de maio de 2018

Iemanjá e a artista: um diálogo de cores

Esta é uma postagem sobre uma artista plástica  –Myrian de Almeida – que trabalha com colagem de tecidos.  Temos aqui um depoimento de um grande artista de Alagoas e, também, umas tantas Iemanjas que ela criou e iluminam asas daqui, dacolá e ate das estranjas.
Sinta o poder e a força da criação.

A Arte de Myrian..

Escrever sobre a obra de uma artista não é tarefa fácil. Principalmente quando essa artista tem uma maneira de criar e produzir sem um alinhamento explícito com algum movimento ou vanguarda. Desvendar a trajetória dessa artista é uma atitude muitas vezes imprudente, pois se corre o risco à infidelidade aos seus pressupostos artísticos. Mas, vamos em frente!
A Arte de Myrian é narrativa e conta histórias de um cotidiano, da infância, dos lugares, das pessoas e consegue transformar aquilo que é banal em algo extraordinário. Assim, vagando pelas lembranças, em uma de suas obras, ela representa a imagem de seu pai, sentado em uma antiga cadeira a contemplar uma paisagem bucólica e dessa forma, sem desmerecer nenhum detalhe, capta a essência e a personalidade do ente querido. Pois, como bem descreve o filósofo Alain de Botton: “A Arte é uma forma de preservar experiências, muitas das quais são belas e passageiras...”.
A Arte de Myrian nos convida a uma nova percepção do “simples” com criatividade e nos instiga a um olhar mais contemplativo, a enxergar a beleza em recortes que ela compõe com extrema sensibilidade e delicadeza. Desse ponto de vista, parece nos trazer um sentido de harmonia e uma sensação do que realmente é importante à vida. A sacralidade, um tema abundante em sua obra, é uma atitude devocional à Arte, as imagens refletem os aspectos da nossa cultura sincretista: O catolicismo nas santas – divinamente representadas com suas iconografias e a umbanda e candomblé com Iemanjás sensualmente mostrando seus encantos.
A Arte de Myrian tem identidade marcante. Assim descreve o Pedro Cabral: “... uma artista que talvez seja a única a criar personagens: a garota, a sombrinha, o gato e a mala.” Acrescento ainda as flores e a originalidade, num processo continuo e diversificado, não se prendendo, nem poderia, ao figurativo e, nessa ruptura, incorpora elementos geométricos ritmados e coloridos com uma técnica de colagem (panos sobre pano), precisa e segura.
A Arte de Myrian não se aprisiona nem é subjugada a nenhum academicismo estético, os relevos pictóricos entrecortados das paisagens, criam a sensação da perspectiva através de planos de massas compostos cuidadosamente, numa linguagem inovadora. Quiçá o nascimento de uma nova estética ao nível da palavra que, como enfatiza Stroeter: “... é possível identificar duas maneiras de invenção artística no processo de criação, e que correspondem a dois vetores de força: um que nasce do social, do público, do popular, do comunitário (ao nível da língua); outro que nasce da originalidade do trabalho pessoal de um artista (ao nível da palavra).”
A Arte de Myrian é sentimental sem ser piegas, pois nos conduz ao mais íntimo e nostálgico pertencimento a um passado onde as relações humanas eram mais aconchegantes, enfocando a vida e as paisagens do campo, despertando na consciência e apontando as virtudes da simplicidade, como a nos mostrar que o paraíso, ainda pode ser aqui.
Eis a artista Myrian! Cujo trabalho é único e múltiplo. A originalidade de sua Arte inquieta o observador, não o deixa indiferente ou impassível, tudo é louvável! Um talento ímpar, uma força de imaginar e construir incomum. Salvador Dali, disse certa vez: “Os talentos nascem como cogumelos, não exige nenhuma explicação”. O talento da artista se evidencia, ou pode se explicar, no perfeccionismo, na articulação cuidadosa das cores, essa última, torna-se tão enfática que se evidencia no cuidado com a combinação, na montagem de um prato com pimentões multicoloridos. Uma habilidade e perspicácia no perceber e representar os sentimentos humanos, traduzidos em obras que poderiam ser nomeadas: “Saudade”, “Ternura”, “Melancolia”, “Alegria”... Sentimentos tão comuns na gente do nordeste.  Assim, sua obra se destaca no “establishment” artístico da Maceió do século XXI. Concluo, enaltecendo o poder de encantar, a força e a grandeza da Arte de Myrian.

Eduardo Bastos

Iemanjá: l'órixa de la mer
the orixá of the sea
l'orixá del mare


 








terça-feira, 29 de maio de 2018

Capoeira e quilombola


Uelber Barbosa Silva possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2009), é mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas (2011) e é doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas. É especialista em História da África; História e Cultural Afro-brasileira; Teorias das Raças, Racismo, Alienação, Ideologia e Políticas Afirmativas. É autor do livro: Racismo e Alienação: uma aproximação às bases ontológicas da temática racial, disponível em: www.institutolukács.com.br. Obvs. Dados fornecidos pelo autor.






Este texto foi gentilmente  entregue a Campus para publicação, pelo doutorando Uelber Barbosa Silva, a quem agradecemos.  Sempre estaremos abertos a publicar material sobre a temática negra. Esperamos que o Professor fique sempre colaborando conosco e nos ajudando a montar um painel de posições sobre Alagoas.
Vamos ler, discutir e sobretudo agradecer.
Abraço

Este material foi publicado em Campus/O  Dia





 Capoeiragem quilombola: a imbricação entre patrimônio material e imaterial

Uelber Barbosa Silva

Introdução

O escravismo colonial mercantil foi uma das maiores tragédias da modernidade, um verdadeiro genocídio contra as populações africanas e indígenas das Américas. No Brasil, ele permaneceu um pouco mais de 60 anos após a vigência formal do liberalismo econômico e político, mediante subterfúgios justificadores, em que os interesses das elites do Império mascararam a realidade e formaram uma opinião pública favorável à manutenção do regime escravista. A abolição formal da escravidão e o estabelecimento da República contribuíram para a reconfiguração da ordem social brasileira, articulando, pouco a pouco, as ideologias racistas do embranquecimento e da democracia racial, configurando os determinantes da composição étnica da desigualdade social gerada pelo capitalismo internacionalizado.
A ideologia racista brasileira – o misto de embranquecimento da nação através da invisibilização, do ódio e do genocídio contra a população e tradições negras – criou um critério de seleção econômica fundamentado por estereótipos relacionados à cor da pele e às supostas diferenças “raciais”. Neste sentido, as elites brasileiras elaboraram padrões de ajustamento que, ao falsificar a realidade social, inferiorizaram mental, moral e/ou socialmente a população negra, levando-a à marginalidade ou mesmo à privação de direitos sociais básicos e fundamentais manifestos na construção da identidade nacional e que persistem até hoje, ainda que manifestos de forma por vezes disfarçada, e outras vezes escancarada.
No contexto brasileiro, a ideologia colonial escravista sempre atuou no sentido de desumanizar o escravizado para inferiorizá-lo e, assim, justificar a escravização. Além disso, essa ideologia buscou formas de criminalizar a resistência escrava, tratando-a não como “casos de protesto social, mas fenômenos de criminalidade multitudinária ou, na melhor das hipóteses, de regressão tribal” (RODRIGUES apud CHIAVENATO, 1988, p. 74).
A produção das desigualdades gerou, no interior da sociedade, a produção da rebeldia, da resistência e do enfrentamento (KAUCHAKJE et al., 2005). Daí as revoltas escravas terem sido reações a maus senhores – maus tratos, modificação no tipo de serviço realizado, separações afetivas, negação do direito ao lazer e à religiosidade, etc. (REIS; SILVA, 1989). De fato, a brutalização do escravizado e a violência do escravismo colonial mercantil eram práticas corriqueiras na Colônia e no Império. Afora toda a violência da captura, do tráfico, da venda, da separação afetiva e do isolamento, a vida útil do escravizado era de sete anos – salvo raras exceções. Ao final de sua jornada se tornavam inválidos ou morriam. Além disso, ocorriam constantemente a especialização dos instrumentos de tortura, o estupro das jovens negras, a mestiçagem forçada e planejada, os abortos forçados, a mutilação das mulheres negras por ciúmes. De acordo com Chiavenato (1988, p. 77), “arrancavam-lhes dentes, cortavam-lhes seios e furavam os olhos. Há casos de sádica vingança: sinhás que cozinhavam pedaços de negras, especialmente os seios, e os servem a seus maridos”.
As formas de resistir eram variadas: a imobilização à espera da morte; o banzo; o suicídio; o infanticídio e o aborto; o assassinato de senhores e seus parentes; as práticas religiosas; a reinvenção cultural; a capoeira; as redes de solidariedade (cooperativas ou sociedades de ajuda mútua, nas quais os escravizados utilizavam seus ganhos para comprar sua alforria ou a de outros cativos); as negociações; as fugas e a rebelião. Em todo caso, a resistência escrava sempre ocasionou prejuízos econômicos.
Com base neste contexto, apresentamos aqui uma parte resumida e inédita (ainda não publicada) de nossa pesquisa já realizada sobre a capoeira e sobre comunidades quilombolas no Estado da Bahia (região Nordeste do Brasil). Trata-se, portanto, de um texto introdutório à questão que visa contribuir com os debates atuais sobre preservação de patrimônio e as possibilidades de imbricação entre patrimônio material e imaterial.


Quilombos: reduto da resistência escrava

Quilombo é um território ocupado por populações escravas fugitivas, locus de resistência e manutenção de práticas tradicionais africanas, a partir da construção de uma economia de subsistência. No Brasil colonial, os quilombos se localizavam em lugares estratégicos como matas e serras; entretanto, em sua maioria, foram levantados nas malhas periféricas dos engenhos, fazendas e cidades, onde recebiam escravos fugidos, negociavam com colonos brancos, senhores e comerciantes, assaltavam transportes de cargas e grandes propriedades, recebiam informações sobre tropas e assim por diante, mantendo relação com escravos que permaneceram sob o julgo escravista.
No período colonial a formulação do Conselho Ultramarino, de 1740, definiu por muito tempo o que era um quilombo: “toda a habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele.” (MOURA, 1981, p.16).
Nos quilombos, as instituições, costumes, tradições e práticas comuns africanas eram reinventadas de acordo com as necessidades e o constante diálogo com as pressões do escravismo colonial mercantil. No processo de repressão à resistência dos escravizados, utilizaram-se, inicialmente, as forças militares da ordem e grupos de mercenários. Ao passo que a resistência foi se especializando, criou-se a instituição Capitão do Mato com o objetivo de manter constante a vigilância e caçar os escravos fugidos, e mesmo utilizando santo Antônio como integrante do exército (o santo recebeu patente militar e soldo para caçar quilombolas). Houve também a prática de marcação a ferro quente com a letra “F” para os fugitivos – e os casos de reincidência eram punidos com a mutilação, arrancando a orelha do fujão, e castigos dobrados. (CHIAVENATO, 1988).
O mais conhecido dos quilombos foi o de Palmares. Localizado na Serra da Barriga, atual União dos Palmares, em Alagoas, na região que compreendia a capitania de Pernambuco, o quilombo dos Palmares surgiu por volta de 1590, teve seu período de maior crescimento entre 1630 e 1640 e sucumbiu em 1695, após massacre que levou seus principais líderes, Zumbi e Dandara, à morte. Palmares teve ainda outro grande líder, Ganga Zumba, assassinado por envenenamento após tentar realizar acordo com o governo pernambucano para entrega de todos os aquilombados em troca de uma suposta “paz” e libertação da escravidão. (CHIAVENATO, 1988).
Palmares se formou inicialmente com algumas aldeias, cresceu a partir da instabilidade ocasionada pela invasão holandesa em Pernambuco e desenvolveu-se a partir da agricultura de subsistência (cana, milho, banana, mandioca). Além disso, fundiram ferro para criar instrumentos de produção e armas, organizaram-se em repúblicas com chefe e subchefes, estabeleceram uma tática peculiar de guerrilha, criaram um intercâmbio comercial com colonos brancos e comerciantes da região e chegou-se a ter cerca de 20 mil habitantes (entre negros, índios e brancos). Foram dezessete grandes expedições contra os palmarinos: a repressão se especializou no processo, chegando ao absurdo de utilizar arma bacteriológica. O responsável pelo desfecho foi Domingos Jorge Velho, líder bandeirante paulista, que venceu a resistência quilombola em 1694, matando Zumbi em 20 de novembro de 1695. (CHIAVENATO, 1988).
Durante a escravidão surgiram muitas comunidades quilombolas por todos os cantos do Brasil. A abolição da escravatura foi realizada em 1888, porém, as comunidades quilombolas tiveram o direito constitucional de usufruto das terras ocupadas apenas na Constituição Federal de 1988. Segundo dados disponibilizados pela Fundação Cultural Palmares, cerca de 3.524 comunidades já foram certificadas e estão espalhadas pelo território nacional.
A Serra da Barriga, em 1986, foi tombada como patrimônio cultural, como forma de homenagear o quilombo de Palmares. Já no ano 2000 o Quilombo de Ambrósio, no Rio de Janeiro, foi tombado, sinalizando avanço na discussão sobre tombamento a partir da “previsão constitucional” de “tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. Nessa nova perspectiva, passou-se a uma nova conceituação de quilombo. O Parecer Deprot n° 47/98 estabelece o entendimento do quilombo como “comunidades autoexcluídas” formado por fugitivos do sistema escravista.
Vale frisar que o quilombo, importante patrimônio material, funciona como ligação afetiva de pertencimento frente às práticas e aos costumes africanos trazidos para o Brasil, e, portanto, sua preservação faz com que ainda hoje existam e mantenham vivas as tradições quilombolas no âmbito nacional. Com o sancionamento do Decreto n° 3.551/2000, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, surgiu o campo do patrimônio imaterial e passou-se a encontrar nas comunidades quilombolas muitos bens culturais registrados. Um desses bens é a capoeira, outro instrumento da resistência escrava, confirmando a relação de imbricação entre patrimônio cultural material e imaterial.

Capoeira: uma resistência permanente

Outra forma de resistência foi a capoeira – cultura popular integrada à identidade de pretos e mestiços escravos, alforriados e livres, das principais cidades do Brasil colonial escravista. As cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Recife possuem a chave para a compreensão do que ela é e de como surgiu e se desenvolveu. Economicamente, formavam as regiões especializadas no cultivo da cana-de-açúcar até finais do século XIX e, portanto, acabaram se tornando os territórios brasileiros com maior diversidade de populações africanas.
Ainda assim, a maioria dos estudos sobre a capoeira não determinam precisamente o seu lugar de origem. Por outro lado, é de comum acordo que ela teria se espalhado para as principais regiões escravistas do Brasil, em geral, através dos portos e da migração escrava.
A capoeira é uma totalidade composta de complexos culturais dinâmicos que dialogam com a malandragem e a mandinga daqueles pretos e mestiços que criaram e reinventaram formas para sobreviver no cotidiano massacrante da escravidão. Ser um complexo cultural totalizador significa que a capoeira se adapta à dinâmica da sociedade incorporando hábitos e costumes cotidianos tradicionais da população negra cativa, alforriada e livre.
A arte da rasteira – como também é chamada a capoeira – esteve presente em episódios marcantes da história do Brasil, tendo lugar especial no cotidiano da população afro-brasileira como um dos instrumentos de luta da população escravizada e uma estratégia de combate aos exageros de senhores, capatazes e capitães do mato, bem como de ao sistema escravista vinculado ao processo inicial de acumulação do capitalista com toda sua ideologia opressora.
Como descrito em artigo sobre a patrimonialização da capoeira (apresentado no CREPAT, na Universidade de Aveiro), a capoeira é música, dança, luta, jogo, brincadeira, esporte e patrimônio cultural imaterial do Brasil e da humanidade. Já o capoeirista tem se utilizado da mandinga e da manha da capoeira para divulgá-la mundo afora, divulgando também a língua portuguesa, e utilizando-a como ferramenta socioeducacional de inclusão de crianças, adolescentes e jovens, com ou sem necessidade especial. Capoeira é luta de matar, é música que faz sorrir e chorar, é jogo de hipnotizar, é dança que faz o corpo arrepiar, é brincadeira de criança e idoso, é esporte de jovens excluídos pelo racismo e pelos preconceitos de classe, e é, enfim, patrimônio que expressa o legado afro-brasileiro, afro-diaspórico e africano (SILVA; SANTOS; AMOROSO, 2017).

Capoeiragem quilombola e sua imbricação patrimonial


Na oralidade da capoeira muito se fala sobre uma origem quilombola da arte da rasteira. Por mais coerente que seja, essa assertiva não pode ser empírica ou documentalmente comprovada; entretanto, pode-se inferir algumas questões que são, a nosso ver, pertinentes para a compreensão da relação entre capoeira e quilombo: a) apesar de os primeiros relatos escritos ou iconográficos sobre a capoeira serem do século XIX, remetem a períodos anteriores, muitas vezes imbricando a capoeira diretamente às fugas e formação de comunidades quilombolas. Já no século XX, a produção literária sobre a capoeira estreitou ainda mais esses laços; b) como tanto a capoeira quanto os quilombos foram criados em um contexto de resistência pela população negra escravizada, é lógico pensar numa relação de reciprocidade entre eles: a população negra fugitiva dos horrores escravistas utilizaram todo arsenal disponível na fuga e na defesa de suas liberdade e vida e, neste sentido, é coerente pensar que muitas táticas de fuga e de defesa tiveram a capoeira como um instrumento.
Quilombolas e capoeiristas foram perseguidos, violentados, encarcerados e assassinados pelas forças repressivas do Estado brasileiro. Ambos resistiram e se reinventaram para sobreviver e continuar resistindo aos processos racializadores excludentes que muitas vezes permanecem direcionando a construção identitária, cultural, política e econômica da nação. Com o fim da escravidão, o conceito de quilombo se ampliou e foi incorporado na Constituição Federal de 1988, numa perspectiva de direitos, e incluído na lista de patrimônio cultural do IPHAN. Assim, a capoeira foi sistematizada, retirada do código penal brasileiro como contravenção penal, incluída na concepção de desporto nacional e também registrada pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial do Brasil.
Atualmente, inúmeras comunidades quilombolas, rurais e urbanas, utilizam a prática da capoeira como manifestação das tradições socioculturais afro-brasileira. Na Bahia, não é difícil localizar tais práticas, espalhada por todo o mapa das comunidades quilombolas. Em Vitória da Conquista e região (sudoeste do Estado), essa relação está presente desde tempos remotos e tem se aprofundado na atualidade. A capoeiragem é permanente nas comunidades do Bolqueirão, Oiteiro e Lagoa de Maria Clemência. Recentemente, a Associação Cultural Centro Educacional de Treinamento Arte e Movimento Capoeira (CETA-Capoeira), dirigida pelo Mestre Dendê, possui trabalho de inclusão social com crianças, adolescentes e jovens nas comunidades quilombolas de Lagoa Torta dos Pretos e em Cachoeira, sob a responsabilidade do Professor Cascão.
A imbricação entre um patrimônio cultural e um patrimônio cultural imaterial é necessária e importante, pois o patrimônio cultural remete a povos e comunidades tradicionais vivos e dinâmicos, que possuem sentimentos e tradições ancestrais. A presença da capoeira nas comunidades quilombolas tem contribuído na elevação da autoestima, na construção de saberes históricos e antropológicos sobre a origem e tradição desses povos e na resistência cotidiana ao racismo brasileiro. Neste sentido, essa imbricação corrobora com a proposta do 5º Fórum Internacional sobre Patrimônio Arquitetônico Brasil / Portugal, em seu objetivo de pensar o reuso e a refuncionalização como instrumentos para a preservação do patrimônio material e imaterial.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

As colonizações e a escravidão das populações africanas em território americano foram alavancas para a consolidação da empresa capitalista que se elevou à relação econômica hegemônica do mundo moderno. A riqueza de algumas nações europeias e, posteriormente, dos Estados Unidos da América significou o genocídio, a escravização, o roubo, a inferiorização racial, as múltiplas violências e a exclusão social de populações indígenas da América e africanas.
A escravidão, no entanto, gerou inúmeras formas de resistência. As principais formas produzidas pelas populações africanas e afro-brasileiras foram o quilombo e a capoeira – sem esquecer das práticas religiosas (e outras relações evidenciadas ao longo desse texto introdutório) que tiveram íntima relação no contexto colonial e que são, agora, fortalecidas com a imbricação das concepções de patrimônio material e imaterial formuladas pelo IPHAN.
A sobrevivência da capoeira enquanto fenômeno cultural identitário encontrou também no quilombo um refúgio, criando certo nível de reciprocidade no âmbito da resistência ao regime escravista e à exclusão social das populações afro-brasileiras efetivada pelas forças ideológicas racistas impregnadas no Estado e em setores estratégicos da sociabilidade capitalista brasileira.
A patrimonialização do quilombo e da capoeira e o reconhecimento da reciprocidade entre os bens culturais materiais e imateriais são estratégias importantes e necessárias para a preservação desses instrumentos de resistência cultural, política e econômica das populações afro-brasileiras. O reuso e a refuncionalização desses patrimônios certamente contribuem também para preservação práticas, hábitos e saberes ancestrais que, além de contribuir para o aumento da autoestima de povos e comunidades tradicionais, corrobora também para o reconhecimento da importância desses elementos na reconstrução da identidade nacional de forma a incluir populações que foram historicamente excluídas.
A manutenção da prática da capoeira em comunidades quilombolas, neste sentido, tem contribuído na elevação da autoestima, na construção de saberes históricos e antropológicos sobre a origem e tradição desses povos e na resistência cotidiana ao racismo brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial.
CHIAVENATO, Julio José. As lutas do povo brasileiro: do “descobrimento” a Canudos. São Paulo: Editora Moderna, 1989.
D’AQUINO, I. Capoeira: strategies for state, power and identity. EUA, 1983. Tese (Doutorado), University of Illinois.
FUNARI, P. P. e CARVALHO, A. V. Palmares, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
KAUCHAKJE, S. et al. Demandas identitárias e construção da autonomia. In: Revista Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social, Ano 1, nº 2, julho de 2005 (ISSN: 1087-698X). Disponível em http://www.assistentesocial.com.br. Acesso em 25 de maio de 2009.
MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1981.
REGO, W. Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SILVA, Uelber Barbosa; SANTOS, Lázaro Vieira dos; AMOROSO, Maria Rita. Capoeira: dança de negro, contravenção penal, patrimônio cultural imaterial da humanidade. In: COSTA, Aniball; VELOSA, Ana; TAVARES, Allice. Congresso da reabilitação do património / crepat 2017. Aveiro, Universidade de Aveiro, 2017.
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Da rede do pescador nasceu o filé: histórias do Pontal da Barra, histórias de minha avó


Poliana dos Santos é historiadora, mestra na área de literatura pela UFAL/AL e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, sob a orientação de Marcos Silva.


Poliana dos Santos é um exemplo de vida e de como se aproveita a inteligência e seriedade que se tem. Jovem doutora pela Universidade de São Paulo retornou para sua terra e se reencontrou, nas raízes do PontL da Barra, com suas próprias raízes trançadas com a história de vida de sua avó, a partir de quem escreve este belo texto.
Campus agradece à gentileza da autora e deseja prestar uma grande homenagem às fileseiras e pescadores do Pontal da barra, através  desta mulher de força que é Angelita Lisboa dos Santos. Através de Poliana, a homenagem segue para a nova inteligência dos historiadores de Alagoas.

Um abraço

Material publicado em Campus/O Dia

Da rede do pescador nasceu o filé: histórias do Pontal da Barra, histórias de minha avó
Poliana dos Santos   


Dona Santa fazendo o filé, na época em que ainda se usava pau de mangue e palha

















As mãos de minha avó teceram o meu mundo, de menina e de mulher.  Sentada e curvada na calçada de casa, sozinha ou acompanhada de outras rendeiras, ela ziguezagueava na rede, presa ao tear, uma agulha fina e cumprida, fazendo curvas e dobras com a linha, preenchendo vazios, deixando espaços vagos à mostra, hesitando ali ou acolá, seguindo em frente. De suas mãos ágeis nascia o filé, um bordado, cuja complexidade e combinação de pontos formam um vivo colorido, de todos os tamanhos e contornos. Do seu quadro, surgem variadas espécies de flores, peixes, pássaros, canoas e personagens do nordeste: a dona de casa na janela, o carroceiro carregando leite, a vendedora ambulante com seu cesto na cabeça. Dessas pinturas feitas em linhas de algodão pode-se construir uma história da gente humilde, e o seu modo de ver o mundo. Mas também do filé se faz o vestido de casamento, a toalha de mesa e de centro, a saída de praia, a saia rodada, jogos americanos, almofadas, bolsas, brincos e colares. As mãos de minha avó criaram um mundo.
Este bordado de origem europeia, localizado em regiões de Portugal e da Itália, e que nos faz recordar de um Brasil ainda colonial, se estabeleceu nas comunidades pesqueiras e lagunares de Alagoas, como no bairro do Pontal da Barra em Maceió e nos municípios de Marechal Deodoro, Coqueiro Seco, Santa Luiza do Norte e Satuba. Foi no Pontal da Barra, faixa de terra entre a praia e a lagoa, que minha avó cresceu e passou a vida inteira. Lá casou, teve filhos, criou os netos e bisnetos, formou uma rede de solidariedade entre vizinhos, amigos e parentes. Com o filé, minha avó enchia o prato de comida, vestia meu pai e meu tio, comprava o material da escola para os filhos, levantou a sua sonhada casinha. Com o filé e suas mãos generosas, minha avó sustentou uma geração, criando possibilidades para que pudéssemos alçar voos e buscar outros destinos.


Nascida em 7 de janeiro de 1927, hoje com 91 anos, Angelita Lisboa dos Santos, ela tem nome de anjo, não fabrica mais o bordado. É a segunda mulher mais idosa do Pontal da Barra. Agora é contadora de história e de causos, relembrando a sua infância e aventuras, o casamento, a vida difícil e a luta cotidiana para aplacar a fome, cuidar das crianças quando adoecia. Sempre percebi que minha avó representava uma liderança na comunidade e na rua onde ainda moramos. Mulher autônoma, forte e cheia de bondade nunca deixou de ajudar a ninguém, todos a procuravam para pedir conselhos, socorro e para curar das enfermidades. Além de ter nome de anjo, as pessoas a chamam de “dona Santa”. Ela fazia milagres!
Mulher sábia, ela conhece várias ervas, chás e óleos curativos que nos receitava e apaziguava as nossas dores, quando a medicina legal não nos vinha em auxílio. Era a cidreira, o capim santo, a hortelã, a sambacaitá, a babosa, a jurubeba, o óleo de coco. É preciso lembra que, no início da formação do bairro, não havia posto de saúde, e o conhecimento da medicina popular era fundamental para a população pobre, sendo com frequência a única possibilidade de cura. Médico era raro na localidade, aparecendo em visitas esporádicas. Quando as mulheres entravam em trabalho de parto, era a dona Hortência que ajudava a “dar à luz”. Ela era a parteira do bairro, e morava em um lugar chamado Castelo Encantado, habitação bem sugestiva para quem fazia milagre e salvava vidas. 


Dona Santa também tirava o mau olhado. Ainda lembro quando algumas mães, com os seus filhos recém-nascidos no colo, apareciam em fila na sua casa, a fim de que ela os livrasse dos olhos invejosos e alheios, que deixavam os meninos febris e abatidos. Sua cura consistia no Pai Nosso e numa reza, realizada antes do pôr do sol, e que poderia ser repetida três vezes, durante o dia. Sua oração era sempre acompanhada de alguma planta, um talo com folhas, que Angelita passava de relance e cruzava sobre o corpo da criança. Acreditava que o olhado maldito recaia sobre o vegetal, que após o fim da sessão ficava murcho. Ela me dizia que qualquer “pé de mato” servia, mas gostava mesmo era do pinhão roxo. Uma vez me revelou o segredo da cura, deixando que eu registrasse numa folhinha:

Pai nosso

Deus te gerou, Deus te criou, Deus te acanhe quem te acanhou
Olhos malditos, olhos matador vai para riba de quem te botou
Com dois te butaram, com três eu te tiro, com o poder da Virgem Maria
Se butar na formosura para que não me diria, que eu te curaria com o poder de Deus e da Virgem Maria
Se tiver olhado na tua formosura, no corpo, no cabelo, na boniteza, na esperteza, na gordura, na tua vida para que não me diria, que eu te curaria com o poder de Deus e da Virgem Maria
Vai para riba de quem te botou

Deus é o sol, Deus é a lua, Deus é a claridade, Deus é o homem de verdade
Salve e sã cure essa enfermidade


Assim como o filé, dona Angelita aprendeu o benzimento com a sua mãe Regina e as suas irmãs. Teve 17 irmãos, vivo hoje apenas cinco. Sabia de outras benzeduras, para o tratamento do mal do monte, conhecida como erisipela; cobreiro, a herpes-zóster; e a espinhela caída, uma dor que dava nas costas, pernas e estômago, causando cansaço. Mas nunca precisou sanar essas doenças, por isso acabou esquecendo como se reza. Minha avó não cobrava um centavo para sarar os pequeninos enfermiços, pois milagre não se paga, era presente divino.
Além de trabalhar no filé e benzer, dona Santa teve outras ocupações. Foi quitandeira, vendendo no outão da residência verduras e frutas: laranja, banana, cebola, tomate, pimentão, melancia, coco, cenoura etc. Foi com o dinheiro do filé que conseguiu montar a quitanda, indo sozinha, todos os dias, ao Mercado da Produção para comprar os alimentos. Ademais, lavava roupa de ganho, quando o Pontal da Barra só tinha um chafariz. O tempo apagou os rastros da cortina d’água, em seu lugar há várias lojas de artesanato, como AlaJosé. Carregava a roupa suja, enrolada num pano, em cima da cabeça, e seguia pela rua de barro até a fonte. A vida não era fácil! Às vezes, a única coisa que tinha para “encher o bucho” era um bolo de farinha, feito com água e pimenta. Tal mistura era conhecida como “cabeça de galo”. Nem sempre “a lagoa dava para peixe”, como diz um ditado popular; e era preciso se virar como podia.
Naquele tempo, a casa era de taipa coberta de palha de coqueiro e se dormia em esteiras. O fogão era improvisado com quatro forquilhas de mangue, onde se punha varas de madeira e palha seca. Cobriam-se tudo de barro. Nesta superfície se colocava tijolo batido, importante para sustentar a grelha. Entre os tijolos ficava a lenha. E pronto, já se podia cozinhar! As roupas eram lavadas em gamela de madeira. Conta meu pai, que na infância, minha avó improvisou dois colchões para ele e meu tio. Ela tomou sacos de aniagem de farinha de trigo, pego na padaria do seu Jorge, e encheu de “capim da praia”. A dormida no início era difícil, porque o capim era duro e espetava! Mas depois foi se acostumando e até “dormir ficou gostoso”. O seu Jorge distribuía o pão para todo o bairro e para as bandas de Barra Nova e Santa Rita. O pão era levado em uma canoa a remo.   
Da meninice de Angelita, conheço pouca coisa. Teve uma infância pobre, seu pai era pescador e sua mãe, vinda de Pernambuco, trabalhava em casa e no filé. Sei apenas que, à noite, chupava o dedo para esquecer a fome e lograr dormir; que cuidava das irmãs mais novas e brincava com a conca do coqueiro, era a sua boneca. Não gostava de estudar, e passava as aulas, que assistia na Colônia de pescadores, penteando o cabelo da professora. Era assim que conseguia escapar das tarefas.
Nas décadas de 1930 e 1940, o bairro do Pontal não se apresentava, como agora, um consolidado centro de comércio e de artesanato, organizado em tendas enfileiradas e paralelas à rua, onde se vende todos os tipos de bordados e de rendas, enfeites, lembrança e utensílios. É interessante que muitas dessas lojinhas correspondem à frente ou entrada da habitação de rendeiras e de pescadores, sendo uma adaptação de parte da sala de estar. No fundo, se mantém os quartos, a cozinha e um pequeno quintal. Nessa área central de negócio, podem-se encontrar pequenos mercados, restaurantes, lanchonetes, sorveterias e uma pousada. Há tendas especializadas em doces e bebidas regionais. Os vendedores ambulantes de milho e picolé também circulam pelas ruas atraindo os turistas com o seu pregão. Mas esse formato não foi por vida assim!
No começo, havia poucas casas, dispersas aqui ou acolá, e não existia estrada asfaltada e nem residência a beira da lagoa. Tinha uma Igreja Católica, mercearia e bodega, delegacia, a Colônia de pesca, um cemitério e o chafariz. Atualmente só resta a igrejinha, localizada na Praça São Sebastião e a Colônia de pescadores. O abastecimento do local vinha do Mercado da Produção, na Levada, onde hoje se encontra o Mercado de Artesanato. Havia muitos brejos, mangues e dunas na região, que aos poucos foram sendo ocupados. Diziam os moradores antigos, que o Pontal era terra de índio e cigano, e de gente de origem holandesa, vinda de Marechal Deodoro. Os homens daqui eram considerados valente, havendo vários conflitos entre as famílias no local. No tempo de mocidade de minha avó, não existia transporte público. O povo andava a pé até o Trapiche, aonde pegava o bonde. O deslocamento era feito igualmente de canoa, pela beira da lagoa. As rendeiras faziam grandes caminhadas para comercializar o filé no cais do Porto, em Jaraguá. Elas subiam na sacada do navio, com autorização do comandante, e vendia os bordados para os turistas. Aos poucos o comércio foi expandindo, e o tecido também passou a ser vendido em lojas e hotéis, e foi sendo levado para os Estados vizinhos, como Pernambuco. Havia igualmente mercadores que iam diretamente ao bairro com objetivo de fornecer os materiais de confecção, principalmente todos os tipos de carretéis de linhas; outros negociantes lá chegavam para comprar e revender a costura para fora.    
Antigamente, quando não se conheciam a indústria dos novelos coloridos, as mulheres tinturavam os rolos de linhas com o colorau, a palha da cebola, a bucha do coco, a corpuna, a salsa da praia. Destas matérias-primas se tiravam várias cores: o beje, o amarelo, o marrom e o roxo. Todo o processo e a arte do filé eram feitos de forma manual e passados de mãe para a filha e netas. Era um trabalho especificamente feminino, mas com o transpor dos anos e a necessidade econômica, alguns homens foram aprendendo a bordar, tornando-se verdadeiro artífice na arte.
Dona Santa casou, em 1945, quando tinha 17 anos. Seu marido José Pedro dos Santos, conhecido como Zé Sofia, tinha 45. Eles tiveram cinco filhos, mas três morreram ainda criança, de causas desconhecidas. Os dois sobreviventes, ainda vivos, são José Pedro dos Santos Filho e Napoleão José dos Santos, meu pai. Zé Sofia era pescador muito sabido, vindo da Serra da Nasceia, no município de Boca da Mata. Conta minha avó, que ele falsificou os documentos e as testemunhas para se casar sem autorização dos pais dela, visto que era menor de idade. Ele chegou a fazer uma carteira de identidade para dona santa, com a data de nascimento falsa, a fim de que ela se apresentasse mais velha. Além disso, levou pessoas para o cartório, no dia do casamento, para se passarem pelos pais de minha avó.
 Foi Zé Sofia quem fundou, em 1930, junto com o mestre Aminadab, o famoso fandango do Pontal, que mesmo hoje encantam velhos e crianças, sendo apresentado especialmente em datas comemorativas e religiosas, como a festa de São Sebastião e o Natal. Estas celebrações eram as mais importantes do local, vindo depois o festejo de São João, em que se dançava a quadrilha, o coco, a chegança e a baiana. Com respeito ao fandango, é um auto de temas marítimos, não possuindo uma narrativa linear. São danças e cantigas que corresponde à marujada, à barca e à nau Catarineta. Tratam das peripécias e dos sofrimentos dos navegadores portugueses. O fandango é composto de mestre, contra-mestre, padre, médico e os marinheiros, todos com uniforme da Marinha. Os passos são cadenciados ao som da orquestra de corda (violão, cavaquinho e viola).
Mas Zé Sofia tinha outras habilidades. Era também conhecido por suas poesias e improvisos, cantando em desafios e provocações que, amiúde, motivou confusões e brigas. Uma vez, o bairro do Pontal da Barra estava em plena animação com a chegada do carnaval. As danças, cantigas, fantasias, serpentinas e confetes se espalhavam pelas ruas, contagiando os moradores. A alegria, porém, estava dividida entre dois clubes carnavalescos: a Ciganinha, do Pontal de baixo, e o Machado, do Pontal de cima. Ao anoitecer, as duas partes marcharam festivas uma em direção à outra, para cruzarem os estandartes. O grupo do Machado, comandado por Zé Sofia, dizia que não encruzava; o líder do grupo rival respondia: “eu encruzo”. E nessa contenda eram compostas charadas para debochar do grêmio adversário. Numa dessas, Machado sai vencedor, dando início a um conflito com pau e faca. Dona Santa recorda desse momento, e guarda em sua memória um fragmento da cantiga do esposo:

Achou melhor vá pra casa se deitar
Para depois não sair envergonhado
Sem ter jeito para dar.

José Pedro não era somente pescador, trabalhava como carpinteiro, construía casas e fazia canoas. Mas o que ele gostava mesmo de fazer era compor poesias e rimas. Meu pai gravou na memória muitas de suas cantigas, que era ensinada insistentemente pelo meu avô nas horas de folgança. Os temas eram variados e se apresentavam na forma de pequenas narrativas. Eles falavam do ébrio, da traição sofrida por Jesus Cristo, do amor de mãe e da importância da mulher. Contava igualmente sobre a valentia, a pobreza e ambição dos homens por riqueza. Quando se tornou evangélico, Zé Sofia começou a compor hinos. A ele também é atribuído à fundação da primeira igreja protestante do bairro: a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Seguem alguns de seus poemas, declamado por meu pai.

Oh Jesus, meu redentor
Do alto céu infinito
Abençoe os meus escritos
Com vosso divino amor
Leciona o trovador
Com a divina inspiração
Para que vossa paixão
Seja desfeita em clamor
Desde o início da dor até a ressurreição

Dentro do livro sagrado
São Marco em perfeição
Nos faz a revelação
de Jesus Cristo crucificado
preso e arrastado,
Cuspido pelo Judeu
Pelo apóstolo do seu
Covardemente vendido
Viu-se amarrado e ferido
Nas cordas dos fariseus

Diante prediz o senhor
Meus discípulos me arrodeiam
E todos comigo ceiam
Mas um me é traidor
Sobre a mão do pecador
Meu corpo pro sepulcro vai
Porém, eu vos digo mais
O homem que por dinheiro
Transformou-se em traiçoeiro
Contra os filhos de Deus faz
      
Ouvi um ébrio dizer
A vida não vale nada
É uma triste jornada
Que podemos fazer?
Estou farto sem beber
Quando era ressecada
Uma cerveja gelada,
Um vinho a cana pura
É a única aventura
De uma vida desgraçada
                *
Entrei numa catedral
Roubei um grande tesouro
Um colar e muito ouro
E penso que não fiz mal

Pra que santo quer metal
Construir tanta riqueza
Aonde vagueia a pobreza
E a miséria consome
Onde um pobre morre de fome
Olhando e vendo a riqueza

Esta história não é minha
Mas também não é areia
Não é grande não é pequena
Não é toda não é meia
Não é certa não é à toa
Não é ruim não é boa
Não é bonita e não é feia.
            
Quando meu avô faleceu em 1972, dona Santa tinha 42 anos, meu pai havia entrado na polícia e o meu tio já trabalhava na prefeitura. A vida de bonança, que se prometia, deixava para trás uma história de fome e dificuldades. Minha avó não quis mais casar, continuou fazendo o filé e ajudava agora na criação dos netos. Conseguiu se aposentar como rendeira, mas não parou. Ainda velhinha e com dificuldade de locomoção, com os seus 89 anos, eu a via sentada no sofá de casa, fazendo rede para vender. Trabalhava por gosto, por amor e para comprar o pão.
Uma vez me falaram que o filé nasceu da rede do pescador e foi se adaptando. É uma sabedoria popular, de quem reconhece que, no Pontal da Barra, a fiação é a base material da existência. Mas é igualmente uma rememoração e uma referência à simbologia religiosa da criação –, “da costela de adão, nasceu Eva”. Uma alusão que explica a organização patriarcal daquela comunidade. Vale dizer que os fios tramados não pescavam somente peixes, elas teciam sonhos e esperanças, coloria uma vida acre, punha os filhos na escola e abastecia a casa de alimento. O filé trouxe, do mesmo jeito, a independência feminina, pondo em tensão o universo masculino dominante. Minha avó nunca aprendeu a ler, apesar de saber soletrar todo o alfabeto. No entanto, ela tinha o dom de outras leituras e escritas. Escrevia com a linha, o seu caderno era o tear e os seus lápis, as agulhas. Contou a sua própria história e vendeu para o mundo; sua narrativa foi levada pelos navios, conheceu os mares e pisou em outras terras... As curvas e as formas que os fios do bordado tramaram, com os seus pontos cegos e entrelaçamentos, seus altos e baixos, seus acabamentos, narraram a vida de Angelita, marcaram a sua biografia. As mãos de minha avó me ensinaram tanto! Mãos hoje magras, atrofiadas e encolhidas, cheias de história e cheias de amor.
Obrigada dona Santa, por me ensinar tanto!