Um
beijo carinhoso em Eneida Padula, uma menina do meu tempo e que era
muito bonita. E outro em sua filha Monalisa, uma bela amiga. As duas
passaram a simbolizar a Bicas que recordo. Nada consultei para escrever o
texto que irei apresentando. Nomes de locais e pessoas podem estar
errados, embora estejam da forma como guardei na lembrança.
Minha cara Eneida
Segue a cartinha que prometi sobre nosso tempo em Bicas. Virou um cartão. Espero que tenha paciência e vá lendo devagar. Quando estiver no tempo de recordar, eu vou escrevendo.
Um abraço
Sávio
Segue a cartinha que prometi sobre nosso tempo em Bicas. Virou um cartão. Espero que tenha paciência e vá lendo devagar. Quando estiver no tempo de recordar, eu vou escrevendo.
Um abraço
Sávio
A saga bancária de Manoel Almeida
Eneida, eu não
tenho uma imagem clara de quando
cheguei em Bicas. Sei que desci em uma estação
ferroviária; vinha da cidade de Penedo, na beira do São Francisco,
nas Alagoas. E suponho ter ido em um DC3 para o Rio de Janeiro. Meu pai
tinha
pressa em chegar; era sua primeira gerência e ele sempre foi fissurado
em sua
carreira. Ele havia pleiteado a gerência
de Penedo, não conseguiu; apareceu a chance de Bicas e ele não perdeu
tempo.
Era um desafio, um desastre de agência, com um imenso rol de dívidas em
carteira, um verdadeiro abacaxi, mas do tipo que ele gostava de
descascar e, descascando bem, na certa ganharia relevo em sua vida de
satélite, quando o
Banco do Brasil era um gerador de emprego e transformador de uma pequena
classe
média em bons maridos, partidos a
casarem com moças de bom viver.
O incrível São Francisco em Pirapora |
Penedo: a cidade que me restou |
capela-alagoas.com.br
Capela e o rio Paraíba |
O Banco pagava bem e passar em seu concurso não era mesmo fácil. Estava Manoel de Almeida saído da agência de Maceió para a de Pirapora onde seria Contador. Voltou para Penedo na mesma posição, com a única vantagem tendo sido a de ter ficado perto da família na Capela e em Arapiraca. Na verdade, era o ramo de minha mãe cuja cabeça e vida repousavam nas histórias da Capela, mais chegada ao lado dos Albuquerques, embora filha de um Almeida. Caetana Maria de Albuquerque – conhecida por Dondon – era casada com o velho Fausto de Almeida, meu querido avô e a quem por ironia do destino, nunca conheci. Eu já era casado quando a minha avô morreu e ela está enterrada em Arapiraca. Meu avô quando morreu, mamãe era recém casada, morava em Quebrangulo, onde meu pai tinha uma escola chamada Ateneu Quebrangulense e era secretário da Prefeitura do Município, depois de ter sido na Capela.
en.wikipedia.org
Bicas, Minas Gerais |
O
caminho levava ao Rio de Janeiro e ao Hotel Ambassador, onde meu pai sempre
teimava em se hospedar, bem ali na Cinelândia, na Rua do Passeio. Eu não me
lembro de nada desta bendita viagem. Nem mesmo de quando saí de Penedo, arrancado de minha vida e
tão móvel quanto era a carreira de meu pai. Sei lá quantos anos eu tinha...
Minha mãe fazia pouco, tinha saído de um parto.
Eu me lembro dela num quarto do Hospital de Penedo, lá no Cajueiro
Grande. Não sei se tive medo de perdê-la. Parece que nada me passaram de temor,
a não ser a incômoda sensação de ouvir dizer que eu iria ficar no canto, o que minha
mãe rebatia e me dava segurança. Ela foi uma mulher fantástica, Eneida.
Minha
irmã pequenininha, quase um nada, seguia conosco. Veja como é a vida:
ela vai morrer assassinada em São Paulo. Pois bem, embarcamos na Estação
Leopoldina e deveria ser de madrugada. Não sei quanto durava a viagem do
Rio
para Bicas. O tempo para Penedo não mais existia. Meu umbigo havia sido
cortado. Existia um tempo novo que eu não podia dimensionar. Mas fico
com o
vagão na cabeça e devo ter criado... Não sei, mas havia um determinado
trecho, subida de uma serra, que
uma locomotiva especial puxava, tendo engrenagens em cremalheira. Volto
a dizer: será que criei?
Sei apenas que obrigatoriamente teria que saltar na estação e que uma
procissão
de esposa, filho, filhas e carregador
seguiria meu pai para o Bicas Hotel ou Hotel Bicas, onde, na certa, tudo
estaria reservado.
A foto não é boa, mas dá a ideia do hotel. |
Pouco
me lembro do Hotel. Sei que havia uma escadaria que levava para o primeiro
piso, e penso que abria em duas laterais.
Na entrada, do lado direito, ficava uma bombomnière; não me lembro do lado esquerdo. O Hotel foi
pensado simetricamente: os lados eram univitelinos. E ele era longo, bem mais comprido do que
largo. Era uma frente que se tentava
imponente, mas que jamais poderia ser pela pobreza da concepção: uma tentativa de fazer um grande em um
pequeno. Após a entrada, pelo que
guardei na lembrança, ficava o restaurante e depois dele, a cozinha.
Frequentei
muito a cozinha, pois ia buscar água para o banho de minha irmã que dormia com
minha mãe em seu quarto. Parece que a água era esquentada com uma resistência e
eu subia e descia a toda hora que a higiene de minha irmã precisava. Na cozinha, depondo contra a higiene, circulava
uma boa quantidade de porquinho da Índia e que parece ter sido a vara indu, do que imagino ter sido o filho do dono do
hotel: suponho que o seu nome era Wagner. Dono, arrendatário, gerente, não sei.
Eu não tinha o
que fazer e imagine o sofrimento de minha mãe, trancada em um quarto de hotel, agüentando o choro de minha irmã mais nova e
minhas encrencas com minha irmã mais velha. Minha irmã mais velha sempre teve
educação refinada; quando vivíamos em Pirapora, era interna no Sacré Couer de Marie, onde se
rezava a Ave-Maria, falava-se francês e os talheres eram de prata. Ela iria continuar no Stela Matutina em Juiz
de Fora e eu seguiria para um grupo escolar de Bicas.
O que
fazíamos
os quatro alagoanos na terra mineira? Ver o trem chegar era um
divertimento. Ler revista em quadrinho, era outro. Papai tinha que
nos tirar de dentro do quarto
de hotel ou iríamos estourar. Normalmente, ele nos levava para passear e
terminávamos numa lanchonete que ficava logo após o cinema. Ele comprava
algum
refrigerante e, invariavelmente, um chocolate. De tanto ouvir o pedido,
guardei
a palavra Cremona. Era pequeno e muito crocante. Acho que foi nesse
tempo que
conheci duas outras coisas importantes: Grapette e Chica Bom.
Refrigerante e
picolé de chocolate. Quem bebe Grapette, repete.
Para me
divertir, deram-me o meu primeiro brinquedo de corda; era um jeep de
guerra comprado se não me engano, na loja do seu pai. Vivia com o jeep
para cima e para baixo.
Uma novidade para quem fazia seus próprios brinquedos com carretel, na
vetusta,
gloriosa e mui leal vila do Penedo. Eu ficava com ele no quarto,
companheiro das horas
sem fazer nada e para não abusar a minha mãe, coitada, carregando a
lapada da
vida que foi novamente deixar os seus, para meu pai confirmar-se como um
grande
homem do Banco do Brasil, como de fato terminou tendo uma carreira
brilhante.
A solução
seria alugar uma casa. Dificuldade. Onde
conseguir uma casa em Bicas com urgência e capaz de dar uma satisfação mínima? Além do mais, os teréns não haviam chegado.
Comprar tudo novamente? Quem vive para cima e para baixo carrega o mínimo de
coisas; as principais, as de maior estima, o que é menos pesado. Tínhamos
espécies de baús e parte vinha encaixotado, como os cristais de minha mãe que
ela embalava com um cuidado impressionante, tanto que viajaram e viajaram e a
coleção encontra-se em sua cristaleira que guardo em casa. Imagina
o que era transportar uma quase casa para outro hemisfério; tudo sair
quase da foz do São Francisco e ir bater na zona da mata mineira. Os cristais já haviam
seguido de Quebrangulo para Maceió, de Maceió para Pirapora, voltado para
Penedo e tomavam o de Bicas.
Não tínhamos
nada e de certa forma éramos indigentes, com a necessidade de roupas de frio,
desde que a nossa era feita para o calor úmido da velha Penedo, a declamada
Princesa do São Francisco. Como dizia minha mãe, o frio em Bicas era tão pesado,
que saía fumaça da boca. Então, era agüentar o rojão de não ter para onde ir,
adaptar-se à comida como se fosse um outro pequeno país. Feijão, modo de cozinhar o arroz, a gordura,
tudo isto mexia conosco e comida do
hotel ia cansando, tanto quanto cansava a correria neurastênica dos porquinhos
da Índia nas bandas da cozinha. Éramos
uma família de poucos metros quadrados, longe de casa e sentindo-se um pouco
sem eira e nem beira. Éramos uma espera de trem e a degustação de um Cremona
numa pequena lanchonete de interior, onde um dia eu vi o famoso Dequinha do
Flamengo, mas é outra história.
Eu não tenho
dúvida, que havia um pequeno drama familiar se desenvolvendo. Relendo as memórias
do meu pai publicadas em livro, o seu esforço para acertar-se com a vida
colocava a carreira em primeiro plano e a família ía se ajustando e ele
gerenciando os novos cenários que se abriam. Minha mãe unia e sustentava tudo,
mas ela sentia uma imensa saudade da família nas Alagoas. Na verdade, ela
trazia Alagoas dentro de si e a revivia contando interminavelmente as histórias
da família. Fui criado dentro do
universo maravilhoso da Capela, tantas vezes contado e recontado por minha mãe. Há uma geografia refeita na
cabeça migrante. Alagoas resistia em Bicas. Era como se fosse dito: meu filho, você está aqui mas é de lá.
A nossa
noção
de família era muito forte; tia Lurdes largou-se de Alagoas com o
marido e
vieram a Bicas; em torno de um nada que havíamos saído de Penedo, tia
Lurdes e tio Waldomiro bicaram. Como o tio Joel, irmão de meu pai, que
veio ficar uma temporada conosco . Ainda tenho foto do Waldomiro e da
tia Lurdes em Maripá e Guarará, Juiz de Fora. Era o cuminho da
família, aquele
mesmo grude que havia feito com que meu pai aceitasse comissão menor,
para sair
de Pirapora e ir para Penedo.
E era aquele batalhão de gente na casa de minha avó na Capela,
naqueles tempos de festa. Minha mãe e mesmo meu pai, traziam isto para Bicas;
por mais que se pudesse gostar do lugar, ele não era o nosso e tudo se indicava
pela falta do cuscuz. Os detalhes se maximizam em explicações, quando estamos
fora e sentimos que estamos. Ali mesmo em Minas, pelos lados de Barbacena, construíram
uma pergunta fantástica: Como pode o
peixe vivo viver fora da água fria?
Minha mãe era um peixe vivo criada nas
beiras do Paraíba e vivida no meio da cana de açúcar dos engenhos como Caborje que pertenceu ao meu
avô Fausto, das canas de açúcar do Minhus que foi do meu bisavô, o Dindinho Néo,
casado com a Dindinha Marquinhas, sendo ele Albuquerque Pontes e ela Sampaio.
Minha mãe
tinha, o que antigamente se chamava de costados no rio Paraíba, no Paraibinha,
no antigo e sumido Riacho Lavapés. Meu pai vinha do Monte Verde do meu bisavô
José Francisco de Almeida, do Mumbaça do seu Manezinho, pai de meu pai. O Monte
Verde nas vizinhanças do Riachão do Cipó, com esse Riachão do Cipó ficando na frente
do Pitimiju, no caminho para os encantados
do Arrasto de Santa Efigênia. Meu pai nunca esteve em Bicas: meu pai sempre
esteve na agência do Banco do Brasil; minha mãe nunca esteve em Bicas: sempre
esteve na sua velha Capela onde me batizei.
E assim, todos nós chegamos onde nunca estivemos, mas vivemos. Bicas
sempre foi tida como um provisório. Era uma passagem no roteiro de Manoel de
Almeida.
Isso não
significa que a cidade não nos interessou. Pelo contrário, foi uma boa
experiência de vida, mas nós não estávamos preocupados em fazer o sul;
estávamos interessados em fazer o Banco do Brasil. Vencer, era uma forma
que
meu pai encontrava para dar à família, aquilo que ele nunca teve. Ele
foi um
homem sem dúvida brilhante e profundamente ligado à família, dando-nos
tudo de
tudo. Ele também nunca havia saído de Alagoas. Toda sua vida consistia
em
voltar à Capela, onde o velho Seu Manezinho perdeu tudo o que tinha em
uma das
crises do açúcar banguezeiro. Manoel de Almeida, o meu pai, chegou a
pedir dinheiro e comida para viver, apesar do irmão ser dono de uma usina de açúcar e
considerado um dos homens mais ricos de Alagoas naqueles tempos.
Tanto Bicas me marcou, Eneida, que, faz pouco tempo, ao receber o título de Professor Emérito de minha Universidade, os lambaris do córrego que passava nas vizinhanças de nossa casa, surgiram claramente na minha cabeça. E eu vi que era também e humildemente, um pedaço daquele córrego que me parece era chamado de São Não Sei o Quê, ou talvez São João.
Qualquer dia, mando a segunda cartinha para você.
Tanto Bicas me marcou, Eneida, que, faz pouco tempo, ao receber o título de Professor Emérito de minha Universidade, os lambaris do córrego que passava nas vizinhanças de nossa casa, surgiram claramente na minha cabeça. E eu vi que era também e humildemente, um pedaço daquele córrego que me parece era chamado de São Não Sei o Quê, ou talvez São João.
Qualquer dia, mando a segunda cartinha para você.
Muito bom! Quando sai de Minas eu já sabia que não era pra voltar, mas senti isso tudo ai que vc falou, quando cheguei aqui. Os cristais se quebraram, a roupa de lã tá guardada. Continuo uma sertaneja ancorada na praia-anfíbia.
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