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domingo, 27 de julho de 2014

Um grupo escolar e a pedagogia da opressão.


Segunda-feira, 26 de dezembro de 2011



Amiga Eneida
Continuo minhas lembranças de Bicas e desta feita são pesadas. Exitei se deveria escrevê-las, mas lembrei-me de algo singular. Bicas não seria um campo isolado e deveria, neste particular da educação, repetir-se por este pais. Bom, quem sabe exagerei, quem sabe minimizei? Somente pode existir uma certeza: na certa lembrei-me.

Não poderia existir outra solução: os Almeidas deveriam sair do quarto, a família ter espaço. Meu pai deveria saber disto mais do que ninguém e conhecia o temperamento de minha mãe, que era uma leoa na defesa das crias. Minha mãe havia herdado o temperamento da velha Dondon, mulher destemida como se chamava no Nordeste, tendo chegado a andar com revolver na cintura quando foi necessário. Papai quando desejava falar grosso, usava de muito cuidado. Um dia ele se aborreceu comigo e falou ríspido. Minha mãe não gostou e a pergunta foi disparada de modo certeiro: O que você quer de nós? O que você quer desse menino? Trancado, sem nada a fazer? O velho caiu em si; murchou como se diz. 


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Depois desta praça, poucas vezes fui;  meu limite ficava  em uma reta imaginária que ía da alfaiataria do  Seu  Edgar,  à casa de um amigo talvez chamado Marcinho
E vai que finalmente a casa aparece. Era modesta, simples e até acanhada, mas dava para a gente e muito bem.  Uma varadinha, uma saleta que eu vejo perfeitamente neste momento. Ela servia de sala de visita e de jantar e era, também, onde eu estudava Os quartos pequenos, banheiro modesto, a cozinha e o quintal. Era branca com as portas e janelas no marrom.  O rádio ficava em cima de um móvel. Era o tempo da índia com os cabelos nos ombros caídos, era do tempo do primeiro amor que logo acabou e só a dor deixou neste peito meu...  Sucessos de Cascatinha e Inhana, o senhor Francisco dos Santos e Ana Eufrosina da Silva. 

Não me lembro da marca do rádio. O que vendemos em Penedo era um Zenith com olho mágico, ondas largas, médias e curtas. A rádio deveria ser de Juiz de Fora ou mesmo do Rio de Janeiro, que não era tão longe assim.  Além do mais, uma imensa antena passava por cima do telhado. Era nova e o dono era nosso vizinho, Seu Mário, que, se não me engano, era organizador de um anárquico bloco de carnaval chamado de Sapolândia.  A concentração era em sua casa. Depois, ele mudou e foi para uma rua no correr do Francisco Peres.
Não sei o nome da rua, ela era sem calçamento e a poeira corria com o vento.   Tenho a certeza de que havia uma boa área sem construção, pelo menos é o que se dava em frente à nossa casa. Não tínhamos vizinhos pela direita, pelo menos próximos.  Bem afastada, estava uma bela casa de uma senhora que parecia ser viúva e tinha dois filhos: um deles era Hugo e o outro era Roney. A casa ficava em um alto e tinha um belo e bem cuidado jardim.
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Para as dimensões que conservei na cabeça, a rua era muito comprida. Ela saia da margem do córrego e ia até à Cooperativa.  Muitas vezes, peguei um carro de boi que passava com o  leiteiro e fui  bater na Cooperativa.  Penso que se descia uma ladeira, onde eu costumava levar minha irmã para passear, a mando de minha mãe, pois a menina precisava tomar sol.  Ali era também onde eu soltava pipa;  não era uma área densamente povoada, casas salpicadas  em um espaço que tinha árvores, talvez mangueiras. A massa verde permaneceu na minha cabeça. 
Eu mesmo fazia as pipas em casa e a briga entre elas era engraçada; um pedaço de gilete no arco. É possível manobrar uma pipa e daí a necessidade de exatidão do cabresto e a proporcionalidade entre peso, forma e tamanho do rabo.  Eu achava que em Bicas havia um avanço na arte.  E era na manivela a que chamavam estrela. Muito mais inteligente,  inclusive pela impossibilidade da linha embolar-se facilmente. A única coisa a discutir, era o atrito que a linha recebia por passar em uma guia de arame. Um pequeno amassado, sem dúvida, provocava o aparecimento de um ângulo. Não sei se ainda fazem aquele inteligente apetrecho em Bicas: um retângulo ao qual se prende internamente um carretel e sofre a ação de uma manivela no momento de  recolher a linha que foi solta.
O caminho regular para minha casa era pegar o oitão do Grupo, seguir em uma reta e tomar a  esquerda. No fundo do quarteirão do grupo tinha uma bodega ou quitanda como se dizia em Bicas. Era muito pobre e quase nada a vender.   Do que viveria aquele pessoal? Dez réis de banana vendida? Em frente à quitanda que se localizava na esquina, a casa em cima de uma colina.

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Se é o Grupo, então...
Na lateral do Grupo, uma pequena casa amarela ficava do outro lado da rua. Um muro baixo, e um pequeno portão. Lembro muito bem, pois havia um aquário e o rapaz que morava lá, era considerado um dos melhores jogadores de sinuca de Bicas. Eu o vi jogando no salão, onde, vez em quando eu peruava. Havia uma platéia grande e em silêncio. Eu ouvia dizer que a aposta era alta. Ficou na minha cabeça, que ele era irmão de uma moça chamada Inês. O aquário ficava perto da janela e deve ter influenciado a minha mania de criar peixe. Parece que a casa era mais baixa do que o nível da rua e realmente não me lembro de qualquer outra construção no seu correr.  Era o Grupo de um lado e um semi-vazio do outro? Acho que sim.

A rua era boa para soltar canoa de papel, quando chovia.  Eu colocava lá perto do Grupo e ficava acompanhando a descida, sinal  evidente de que em algum ponto se teria uma grota, e ela estava por onde eu soltava pipa.  No mais das vezes, o navio era um pequeno pedaço de pau, um graveto que o imaginário transformava em potente embarcação. Do lado do Grupo,  mas dando para a rua de frente, havia uma oficina que concertava bicicleta, e que alugava por hora. Eu era um cliente constante. Na minha geografia sentimental de Bicas, aquele trecho fala muito, até pelo fato de ser um anúncio de chegar em casa e de chegar na escola, um local onde tive grandes das piores experiências de minha vida, nas mãos de uma professora. 



Ela devia ter uns vinte e cinco potes de raiva guardados em casa. Aquela imagem  de uma educação passional permaneceu,  e possivelmente fez com que, bem depois, eu assumisse uma educação diferente, tendo trabalhado em grandes experiências como a do Movimento de Educação de Base e Paulo Freire lá no Rio Grande do Norte. Esqueci  o nome dela. Foi o contrário de uma parenta da Dona Manu, chamada Talma (?), Telma (?).  Ela foi legal, compreensiva, incentivadora. Aquela outra poderia me ter destruído, pelas vergonhas públicas que me fez passar. Eu conheci de perto o que a sala de aula pode representar como local de repressão. Por conta disso, sem dúvida, sempre me agradou o tom anárquico do Ivan Illicht que, aliás, caiu de moda, deixou de ser lido. Parece que era jesuíta e, se foi, era um jesuíta muito do esquisito.

A gente formava, fazia fila e entrava na sala de aula marchando e cantando hinos patrióticos, solenidade que  imagino derivava de um resultado estadonovista.  Estudantes do Brasil sua lição é a maior... Avante camaradas... Qual cisne Branco... Já podeis da Pátria  filhos... Recebe o afeto que se encerra...  E por aí segue e acho mesmo que ainda utilizei o velho caderno Avante e, também, o lápis Faber e a pasta, pois não se usava mochila. Não era gente da alta que estudava comigo. Eu me lembro bem de uma menina que minhas lembranças batizaram como Luíza.  

Fomos uma vez estudar em sua casa, o pai deveria ser ferroviário, morava na beira da linha e na minha cabeça ficou que era de madeira. Casa muito pobre, mas havia um verdadeiro orgulho na mãe que tudo fez para acomodar  no melhor de sua mesa, no melhor de suas cadeiras,  três ou quatro de nós,, tudo limpo.  Pobre é sempre assim:  acha que a limpeza supre a evidência das faltas, da carência. Talvez por isso que minha mãe fosse tão esmerada dona de casa; ela era filha da Dondon, a pobre costureira e mulher do velho Fausto que nunca teve sorte em nada.

Minha mãe, até mesmo vendou  jogo de bicho para ganhar um dinheirinho.  E tanto era a marca de pobre que ao sabê-la namorando meu pai, a minha avó a chamou e disse: “Mas minha filha, você vai casar com um homem mais pobre do que você?”.  Pois casaram na Matriz de Nossa Senhora da Conceição na Capela, onde fui batizado. Tiveram cinco filhos e três morreram, restando uma  que é médica no Recife e este que vos escreve. E viva meu pai, e viva a minha mãe! E viva meus irmãos que estão defuntos e dos quais sinto imensa falta, mesmo não tendo convivido com dois deles.



Este modernoso desvirtua minhas lembranças.  Reputo como uma péssima solução arquitetônica.  Isto aqui era belíssimo. Andei muito pelo oitão da Prefeitura, subindo para casa que ficava frente ao Forum. Nossa segunda casa. A Bicas que eu vivi jamais poderia ser tão feia. Era linda. A Praça nos fundos da Prefeitura, tinha velhas árvores a darem sombra e eu gostava de subir nelas.
Mas voltando à Bicas, o Grupo não era muito grande.  Sei lá, uns 80 metros de fundo. Penso que a gente entrava, passava por um saguão por onde ficava, inclusive, a secretaria, adentrava por uma porta, havia um corredor e as salas que eram poucas, a meu lembrar eram  em torno de cinco a seis. A minha era do lado esquerdo, do lado que dava para a casa do aquário.  Acho que havia um desnível e se descia por uma escada para ter-se acesso ao pátio acanhado, onde ficava, também, um galpão. Na parte de cima e em um canto, ficava o local fatídico da merenda, uma gororoba de pífia categoria.

Era uma sala lotada de crianças, espremidas. Eu me sentava na frente, encostado numa parede e com a cadeira em posição diferente das demais da sala.  Eu estou vendo a professora e seu rosto ficou-me tremendamente feio; ela estava com  meu texto e eu havia cometido um mero engano. Ela pega o pedaço de papel, balança na frente de todo mundo, olha para mim e com um sorriso debochado grita “Nacioná!”. Eu havia simplesmente esquecido o l no final.  Mas ela balançava o papel com uma ira, que não poderia ser normal.  E gritou: “Só pode ser coisa de nordestino! Vá se sentar lá atrás agora! Não pode ficar aqui na frente!”. 



Aqui ficava cheio de carroças e camionetas
                                                                                                                                
Eu me levantei e calado fui. Eu não disse nada e quem sabe me curvei à opressão. Eu não tinha ideia do que era nordestino, mas se eu merecia uma reprimenda daquele tipo, era simples: nordestino não prestava e, por conseqüência, eu não prestava. Saí de cabeça baixa, os meninos se afastaram e eu fui para o meu primeiro lugar social indicado pela repressão. Terminada a aula, curiosamente, ninguém mexeu comigo. Peguei a direção de casa; era coisa de meio dia, panela no fogo e barriga vazia, como a minha mãe brincava. Ela notou que alguma coisa havia acontecido. 

Eu disse que não  iria mais para a escola e chorei. Ela me perguntou a razão. Contei. Minha mãe não disse nada, apenas me puxou para o colo. Fui para o quintal. Com pouco chega meu pai.  Conversam. Ele vem, passa a mão na minha cabeça e não diz nada. Á tarde, eu não peguei nos livros para estudar, fazer o dever.  Minha mãe me chama. Diz que ela e papai estão tristes, mas  que eu deveria superar aquilo tudo.

Segundo minha mãe, era uma lição que eu recebia da professora, muito mais importante do que as aulas que ministrava.  Ela havia me ensinado que existiam pessoas assim e que eu iria lidar com este tipo de gente durante toda minha vida. E me pedia para não desistir, que fosse enfrentar;  se eu desistisse, ela venceria. O carinho de minha mãe foi o que me deu segurança. Eu aprendo a lição. Detesto, ainda hoje, todo comportamento opressor. 

Mas ela continuou. Ela tinha muito pote guardado em casa, o seu estoque era uma coisa impressionante.   Não venceu; pelo contrário. Construiu a minha inclinação natural contra a escola como o lugar privilegiado da educação e isto me fez realizar-me em formas como o Movimento de Educação de Base, o Movimento Paulo Freira, de Pé no Chão também se aprende a ler e mesmo a forma como trato meus alunos que eram do bacharelado e trato os do Mestrado  Dinâmica do Espaço Habitado. Ela me serviu para estabelecer a diferença. 

Outra feita foi na merenda. Sempre me acostumei a andar com uma merendeira. Minha mãe preparava.  E eu levava. Um dia, sem qualquer razão, ela perdeu a compostura na frente dos outros e na sala da merenda. Gritou dizendo que aquilo era um absurdo, que era coisa de rico,  que eu tinha que comer igual aos pobres. Talvez ela tivesse razão na proposição e não na forma. Os outros comiam o mingau sem olhar. Novamente aquilo bateu em mim, mas segundo Maria José de Almeida, eu tinha que aprender a lidar com este povo.  Disse em casa. Desta feita, Maria José de Almeida já estava pelos lados de Bagdá e disse: “Acho que é preciso ter uma conversa com essa mulher!”.

Nordestino sabe o peso desta expressão. Ter uma conversa é algo muito sério, é para resolver a questão.  E não  adianta ir e não resolver. Naquela época, o comportamento social de um gerente do Banco do Brasil tinha que ser exemplar. Ele não podia dar vexame público. Meu pai me ensinou muita coisa.  Eram estratégias de sobrevivência. Nunca acosse demais um rato; ele não terá alternativa e voará em você. Se você que matar uma cobra, arranque a cabeça. E por aí seguia  o rol  de estratégias aprendidas com gerações nordestinas. O anúncio de uma possível conversa era uma coisa meio forte. Passa tempo, parece que todo mês uma sala se apresentava no intervalo, lá no galpão coberto. Fui escalado para dizer uma poesia.  Ela reclama tanto que eu esqueci e foi outro vexame. Eu não disse mais nada em casa. Mas a coisa pega. 

Como sempre, aluguei uma bicicleta. Havia chovido, a rua de barro estava cheia de poças. Uma delas era funda.  Eu andava com as mãos soltas e os pés no quadro. Embalava e dava o espetáculo. Tinha uma menina e fui me mostrar. Bati numa pedra, caí feio. A bicicleta sobe e cai sobre meu fígado. Uma pancada sem tamanho.  Não sei se disso ou de alguma contaminação, eu tive uma hepatite e fico todo inchado.  Imagine uma doença grave em Bicas àquela época. Foi coisa pesada e praticamente devo a vida a um médico que existia, chamado Dr. Milton, acho que casado com uma senhora cujo nome era Maria Baião,  diretora do Ginásio e uma mulher por quem guardo imensa simpatia e respeito.  

Falavam dela, diziam que era metida a coisa, chata, ríspida. Nada disso, um doce de pessoa que tinha todo o direito de não andar rindo a toa.  Eu gostava demais dela, inclusive a sua gentileza era imensa com os amigos do filho.  Frequentei  a sua casa, perto da telefônica,  pois era amigo do seu filho que se chamava Miltinho.  Ela era uma pessoa delicadíssima e agüentava uma tropa a brincar,  inclusive a jogar futebol sem parar, nas peladas  diárias que chegavam a perto das seis da tarde.  Se o Miltinho for vivo – e espero que sim –,  não deve se lembrar de mim.  Mas fomos bons amigos, andamos muito juntos. Era gente muito fina. A última imagem que guardo dele é de uma noite friorenta em Bicas; nós dois descíamos a ladeira das vizinhanças de sua casa e íamos ao cinema. Nós nos afastamos quando ele foi estudar no Granbery em Juiz de Fora e eu saí de Bicas. Ele e o mais das gentes não  devem  se lembrar de mim,  pois fui episódico. Eu sumi da convivência e seria difícil ser mantido na lembrança.  

Eu fiquei inchado mesmo, deitado numa cama, sem me movimentar.  Dr. Milton cuidou e fiquei bom, mas me liberou cuidadosamente e fui depois de mês, recuperando devagar a rotina da vida. A instrução era que ficasse sem me movimentar no recreio. E a dita cuja encrencou, dizendo que eu deveria sair. Aí, a coisa não ficou boa. Meu pai  disse: “Eu vou sair para ter uma conversa!”.  O nordestino de antigamente sabe perfeitamente o que isto quer dizer. Minha mãe pediu e ele não foi. Mas por milagre tudo cessou. Ela até me chamou para cantar na festa de nossa formatura. Foi no cinema, mas isto é outra história.

Na próxima vez, eu vou falar da melhor pessoa em Bicas para mim, uma das poucas  que fiz questão de me despedir quando saí. Um homem extraordinário e a quem, ainda hoje,  guardo no coração. Penso que era Dr. Bianco.  Era Vicente Bianco; homem decente e bom. Fui lá me despedir com os olhos cheios d’água. Sentamos na varandinha da casa, onde vez em quando  conversávamos. Era como se fosse a substituição de um avô. Eu tinha um respeito imenso.

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